terça-feira, 3 de outubro de 2023

O digital veio para ficar e ficou mesmo [ponto]

Algum dia, em nome da preservação do ambiente, ou de qualquer outra causa, que não vislumbro, num futuro que não sei como será, cenário de ficção científica, apocalíptico talvez, o livro em papel será objecto de museu!

Vem isto a propósito do debate sobre os usos e abusos da utilização dos instrumentos digitais na escola, que me traz o desconforto de estar na presença de um de­bate sem rumo e sem foco. Elege-se o smartphone como inimigo e, de re­pente, não é só este dispositivo que está em causa, mas to­dos os dispositivos electrónicos, como supor­te da in­forma­ção em geral, e do texto em particular. Somos o oito ou oi­tenta, vamos do endeusamento do digital à sua diaboliza­ção, com uma rapidez surpreendente (efeito de “Maria vai com as outras”, que nos dispensa da capacidade de pen­sar?).

Até há bem poucas semanas, quando se fa­lava dos perigos associados ao digital, não era o seu uso, em geral, que era posto em causa, mas o seu uso sem con­trolo. Agora, dizem-nos que “a simples proximidade de um telemóvel é capaz de distrair os estudantes (...), prejudicar a gestão da sala de aula (...) e pôr em risco a interacção humana”, como que a admitir que o trabalho na sala de aula (se de trabalho se pode falar, nestas condições) se desenrola em roda livre [1].

O que caracteriza a escola como espaço educativo, é o con­trolo do trabalho de aprendizagem que nele se realiza. Não se vai para a escola para usar os instrumentos de trabalho (digitais ou quaisquer outros), à vontade do fre­guês, sem critérios ou sem qualquer objectivo educativo no horizonte. En­tão, a questão está em saber em que condi­ções, e por quem, esse controlo é exer­cido. Aliás, como dizia António Nunes, no programa Antena Aberta, a propósito da entrada, na es­cola, das tecnologias de infor­mação e comu­nicação, “há momentos em que a voz é importante e as ca­netas estão paradas [2]. Ora, é precisamente ao professor que compete gerir estes momentos: decidir sobre os tempos em que os smartphones estão ligados ou desligados. Não acho, assim, pelo que se diz e escreve, que seja um problema que resulte da proximidade dos alunos com estes dispositivos, mas da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, que grande parte dos professores sente, em gerir aqueles tempos. Conse­quência de uma autoridade (a sua), que a cada dia sentem que estão a perder e pensem que, desta forma, ela possa ser restau­rada? [3]

Se da presença dos smartphones, na sala de aula, se pode dizer que le­vanta, em muitos casos, problemas difíceis de gerir, já da substituição dos manuais escolares, em papel, pelos correspondentes digi­tais, não vejo que problemas possa trazer. Os ta­blets que suportam os manuais esco­lares permitem o acesso a conteúdos que não queremos que se­jam acessíveis aos nossos alunos? Fácil: bloqueie-se o seu acesso nesses dispo­sitivos; façamo-los dispositivos dedica­dos à leitura de manuais es­colares e de mais informação re­lacionada com eles.

Bastou a Sué­cia travar às quatro rodas, na digitalização dos ma­nuais escola­res para que, entre nós, se levantasse um coro de vozes a reivindicar idêntica decisão. Como se, o livro em papel, só consiga entrar na sala de aula através do ma­nual escolar... Esquece-se que, o que se passou na Suécia, foi o resultado de uma soma de excesso, que valeria a pena analisar, não vá começarmos nós, agora, a soma de outros excessos mas de sentido contrário [4].

Para mim e para outros como eu, que gostam de livros, o manual escolar é um “livro” que não é livro. É coisa da es­cola, um instrumento de trabalho que, sendo bem feito (seja qual for o seu formato), poderia ser ligação a outros livros, esses sim, a merecerem ser lidos ou consul­tados. Além do que, o livro digital (e-book) também é li­vro, e são cada vez mais as editoras que, a par da edição em pa­pel, apostam neste formato. Pela parte que me toca, con­fesso, são mais os livros que compro, hoje, neste formato do que em papel. Leio-os, nos dispositivos dedicados à sua lei­tura, com o mesmo prazer ou desprazer, de­pendendo do conte­údo, excepto no ecrã de um pc.

Claro que, dir-me-ão, “sentes o mesmo prazer a ler e-books, porque passaste pelo livro em papel antes de chegar a eles. Quer dizer, construíste uma relação com os livros, que trans­por­tas agora para o digital; ao lê-los, na tua cabeça está, de certa forma, um livro”. E é verdade, ou acho que é verdade: o desenvolvimento do gosto pela leitura de um livro faz-se também da relação (afectiva), que conseguimos estabelecer com o objecto que suporta o texto. Quem gosta de ler tam­bém gosta de livros. Quem gosta de livros também gosta de ler. Os miú­dos precisam de estar rodeados de livros para que possam relacionar-se com eles. Se não estão em casa, deveriam estar na escola, na sala de aula. 

O manual esco­lar digital só é concorrente do livro em papel se deixarmos que seja. Na Sué­cia, quiseram que o digital fosse con­cor­rente do analógico. E ele fez o que lhe compe­tia: deu cabo da concorrência! Porque deixa­ram que desse! Agora fazem marcha atrás, num processo em tudo seme­lhante, mas em sentido contrário, respei­tando, suposta­mente, as conclu­sões da "ciência". Temo que se esqueça que, em edu­cação, nem tudo (para não dizer nada) é científico; o que acontece, nesta área, tem em conta as ciências, certamente (da educação e outras), mas a sua aplicação não é científica, é pedagógica: uma acção inserida na busca do sentido do acto educativo, na sua relação com os instrumentos pedagógicos que melhor o servem [5]. Valeria a pena, certa­mente, trazer a voz dos pe­dagogos para o debate.

Estranho mundo, este em que vivemos. Valorizamos o digital nas nossas vidas, mas não sabemos (nem procuramos saber) o que fazer para ajudar as nossas crianças e jovens a usá-lo de uma forma saudável! Apetece dizer, com Philippe Meirieu, “Velho devaneio filosófico: reduzir o mundo àquilo que podemos pensar dele ou àquilo que per­cebemos dele. E, para ter a certeza de lá chegar, fazê-lo en­trar in­teiri­nho no nosso campo de visão...” [6].

Entretanto, chegam-me notícias que dão conta de escolas que proíbem os smartphones nos recreios, aparentemente com a adesão dos miúdos: “Foi quase como se tivesse auto­rização para brincar” [7].

O recreio é um daqueles espaços que, embora na escola, é um espaço, de certa forma, sem controlo. Não é sobre estes espaços que escrevo. É sobre o uso dos dispositivos digitais em espaços controlados, que me atrevo a pensar. E que só neles é possível aprender a usá-los de forma sau­dável. Por­que se não há um espaço onde as crianças possam apren­der, elas aprendem, de qualquer forma, em qualquer es­paço, correndo o risco de aprender mal: no recreio, por exemplo. Nestes espaços, não con­tro­lados, e só nestes, que, tantas vezes, nem vigiados são, admito que o uso destes dispositivos possa ser vedado, não sem antes procurar que a decisão seja vista como legítima, aos olhos de todos quantos serão afetados por ela.

E já agora, uma provocação, ou nem tanto: porque não vedar o uso do smartphone no espaço familiar, pelas mesmas razões com que se pretende proibir o seu uso na escola?

DISPONÍVEL em PDF >>>


[1] Onde o smartphone põe em risco a interacção humana, não é na sala de aula, onde é utilizado como instrumento de trabalho. O risco ocorre em espaços sociais não controlados, e em espaços familiares que os usa como “amas”.

[2] “Computadores na escola: quais os aspectos positivos e quais as des­vantagens”. Programa passado, em simultâneo, na TSF e na RTP2, em No­vembro de 2012.

[3] “O verdadeiro problema não é o declínio da autoridade, é o facto de se colocar em rivalidade as autoridades entre si no seio do próprio processo educativo (...). Aquilo que está verdadeiramente em causa não é restau­rar a autoridade mas de torná-la legítima aos olhos daqueles que estão sujeitos a ela, não só a fim de que a aceitem mas também de que a respeitem” (Philippe Meirieu, in O mundo não é um brinquedo, Porto, edições ASA, 2066: p. 28).

[4] O recuo da Suécia é algo mais complicado do que o simples processo de voltar atrás na digi­talização dos manuais escolares. Porque não é ape­nas a digitalização dos manuais que está em causa. Avançaram tão rapi­damente, e de um modo tão radical, neste proces­so de digitalização do ensino, que chegaram ao ponto de trocar não só o livro em papel pelo e-book, mas também de apostar na irradicação do papel, trocando-o pelo pixel, o que levou ao uso do teclado como instrumento privilegiado de escrita.

[5] "Viver é resolver problemas. É isso que é decisivo" - diria Karl Popper, se fosse chamado ao debate - "O mundo põe problemas à vida. Ao mesmo tempo a vida é o pressuposto do problema (...) e as teorias que colocamos ao mundo são tentativas de resolução de problemas". E não é pelo facto de ser retirado do espaço onde ele se manifesta que um problema deixa de ser problema.

[6] Philippe Meirieu, O mundo não é um brinquedo, Porto, Edições ASA, 2006: p.199.

[7] In Público on-line: 1 de Outubro, 2023.

"DESCAMISADOS"


Não vou fazer história nem contar estórias sobre a vida de Eva Duarte de Perón, mas… sim, lembrei-me dela e da sua relação com os “descamisados”, na sua Argentina, e dos movimentos por justiça social 

Justiça social é o que falta neste mundo que desrespeitamos todos os dias. Numa população de cerca de 8,04 de bilhões de pessoas, mais de 780 milhões vivem abaixo do limiar da pobreza e 11% da população total vive em pobreza extrema, sem conseguir satisfazer necessidades básicas de alimen­tação, saúde, acesso a água e saneamento. *

Não vou fazer análise sócio-política sobre os dados que acabo de expor e que se encontram ao al­cance de quem os quiser consultar. Basta olharmos à nossa volta: as filas para aceder a uma re­feição diária, aos sem abrigo que estão nas ruas, defendendo-se do frio e dos ataques, nas estações de metro ou em qualquer pardieiro à espera que um qualquer cigarro, mal apagado, os faça desapa­recer.

A miséria encapotada é mais que muita: filhos que continuam em casa dos pais apesar de trabalha­rem e desejarem a sua independência, novas famílias que não se formam, “velhas famílias” que se aguentam na mesma casa apesar de já não terem nada em comum, filhos que não sabemos amar e educar, depositando na escola o que devia ser feito em casa. Sofremos pelos pais, pelos filhos e netos que não temos por perto. Despovoaram-se aldeias, onde só ficaram os “velhos”, abandonados e tris­tes, sem o poder reivindicativo de sindicatos que os defenda, num mundo de cada um por si.

Depois, porque não estamos bem, olhamos de “soslaio” e desconfiança todos aqueles que nos pro­curam, fugindo das guerras, da fome, da violência, e que, em vez da segurança que procuram, são acolhidos por gente que se aproveita da sua fragilidade, para os explorar sem qualquer escrúpulo. Já fomos de tudo: emigrantes e imigrados, refugiados e estrangeiros. E, apesar disso, sem querer entrar na verdade da nossa história, fica-me a sensação de que não conseguimos evitar que o nosso passado colonizador contamine as nossas acções.

Não, não “somos todos um só”. A proximidade cultural, que o processo de mundialização nos permi­tiu imaginar, está longe de se concretizar. Não basta dizer, como afirma o biólogo americano Alan Templeton, que não existem raças e que as diferenças genéticas entre as mais distintas etnias são insignificantes, que o conceito de raça não é biológico mas cultural.

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*10% da população mundial controla 76% de toda a riqueza deste planeta, 50% dos mais pobres vão sobrevivendo com 2%, nós “os médios”, temos que trabalhar muito e ter alguma sorte para usufruir dos 22% que restam...

terça-feira, 26 de setembro de 2023

A literatura como motor de conhecimento

Percorro as páginas de "Tempo de erros", relato autobiográfico de M
UHAMMAD CHUKRI [1], e detenho-me ao ler:«O demónio da Literatura apoderou-se de mim e eu comecei a interessar-me mais pela leitura de obras literárias do que pela psicopedagogia ou pelo regulamento escolar». E leio mais adiante: «O professor de psicopedagogia apanhou-me a ler Os Miseráveis e expulsou-me da aula aos gritos: "Isto é uma sala de aula, não uma biblioteca"». E dou comigo a divagar à volta de uma escola, onde a literatura é porta de entrada, se não de todos, de grande parte dos saberes: E se as salas de aula estivessem implantadas no interior de uma grande biblioteca, fossem também as suas salas de leitura, com paredes de vidro a deixar ver as estantes e portas de acesso a dar para ela? Um cenário de ficção, obviamente!

«As histórias, como as parábolas, os enigmas e os símbolos, dirigem-se à área mais reflexiva da pessoa, onde o afeto e o conhecimento se unem, para nos fazer desejar, admirar e sonhar», diz PEDRO CUNHA, ao que JOSÉ MATIAS ALVES acrescenta«Unir o afeto ao conhecimento, ligar a emoção à razão. Assumir que não há saber sem sabor. Fazer de cada lição uma história, uma resposta»[2].

Sei pouco das razões que levaram MUHAMMAD a trocar a aula de psicopdagogia pela leitura d'Os Miseráveis (Certamente, mais do que as que me levavam a desenhar bonecos, enquanto fazia de conta que tirava notas da aula). Mas gosto de pensar que algumas estarão algures por ali E não sei também o que faz, hoje, um professor, que apanha um aluno a trocar a sua aula pelo “demónio da literatura”: pedir-lhe para fechar o livro e estar atento à lição? Não sei! Mas prefiro imaginar, talvez, a ouvi-lo perguntar o que está a ler, a ouvir as razões que o levaram à trocaE procurar, quem sabe, ligações prováveis entre os conteúdos do livro e da aulaIsto imaginando como possível, que um aluno escolha a leitura de uma obra literária, para "fugir" da sala de aula. Algo improvável, num tempo em que o smartphone tende a desviar-nos do livro ou mesmo da leitura de textos, literários ou não [3].

Para assinalar o "Dia Mundial do Livro", algumas escolas fazem do livro a "estrela do dia". Em todas as tur­mas, seja qual for a disciplina, no tempo agendado, os alunos lêem em voz alta excertos de uma obra previa­mente escolhida para o efeito. Assim, durante um curto espaço de tempo, os alunos trocam a matemática, a mú­sica, a educação física,... pela literatura, num ritual que António Nóvoa classificaria de "pro­jecto de ano bis­sexto"[4] ou para a fotografia que provoca a notícia, dirão mui­tos de nós, e pouco mais. Não é, então, "fugas da sala de aula", através da leitura de obras literárias, que procuro, mas encontrar portas que se abram à sua en­trada, nos lugares onde não é suposto a entrada da lite­ratura. Mas, com um currículo partido às fatias, como fazer entrar a literatura, com as suas histórias [ou histó­rias apenas], em todas as disciplinas? Nem todas elas têm esta “vocação” literária, é certo. Mas isto não signi­fica que os diferentes saberes, que te­mos para ensinar, não possam ser contaminados pela litera­tura [5]. Mas para isso é preciso aproveitar todas as opor­tunidades, criando-as se preciso for, de fazê-la pre­sente [6] e não apenas, provocando a sua “entrada a mar­telo”, no Dia Mundial do Livro

Daniel Lousada




[1] Muhammad Chukri, Tempo de Erros, Lisboa, Antígona [Ver citação >>>]
[2] José Matias Alves, Uma pedagogia da fascinação [LER>>>]
[3] Não se trata de recusar o digital como suporte do texto. Para mim o livro digital (e-book) também é livro, e não deveria ser misturado no sim ou não à presença do smartphone na sala de aula [assunto que espero abordar em breve].
[4] António Nunes conta que António Nóvoa, aquando da visita a uma sala de aula, de uma escola, na cidade do Porto, refere-se ao trabalho da professora nos seguintes termos: "Vê-se bem que nesta sala não existem projectos de anos bissextos", quer dizer, projectos que acontecem apenas em dias festivos e com pouco ou nenhum conteúdo educativo.
[5] Na busca de ligações com a psicopedagogia, leio n'Os Miseráveis, que entretanto revisitei: «Se uma alma é deixada na escuridão, pecados serão cometidosE a responsabilidade não é de quem comete o pecado, mas daqueles que causam a escuridão (...). Certamente nós falamos connosco mesmos; não há um ser pensante que não tenha experimentado isso. Alguém até poderia dizer que a palavra é um mistério ainda mais magnífico quando, dentro do homem, ela viaja de seu pensamento até à consciência, e retoma da consciência ao pensamento»Victor Hugo, Os Miseráveis, Círculo de Leitores, 1982: vol. 1, pp. 26 e 311.
[6] A título de exemplo, o poema de Manuel António Pina, Coisas que não há que há, traz a literatura para o planeamento [VER>>>]; e O pequeno livro da desmatemática, leva a matemática até ao universo das histórias. 

terça-feira, 12 de setembro de 2023

Inovação ou o já visto pintado com outras cores?

"(...) Insistimos muito menos no aspecto novidade do que no da adaptação às necessidades do nosso século. Uma técnica de escola tradicional pode perfeitamente integrar-se nas nossas concepções, se permitir e facilitar as formas de trabalho que preconizamos",* defendem Freinet e Salengros na pequena brochura a que deram o título de "Modernizar a Escola".* E desvalorizam o valor da novidade: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade [modernidade, no dizer deles] das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa; do inovar por inovar ou como instrumento de propaganda, acrescento eu.

A história recente da educação mostra-nos uma escola obcecada pelas inovações que não são outra coisa mais do que "novidades velhas”, mesmo velhas, na maior parte dos casos, pintadas com outras cores, disfarçadas de coisa nova: fazem-nas aparecer com estrondo para logo se esfumarem passada a surpresa inicial, destronadas por outras com cores mais atraentes; inovação apenas para quem não sabe nada da sua história. E esta obsessão é de tal forma que, por vezes, não basta trazer para a escola este ou aquele instrumento pedagógico, é preciso transformá-lo numa caricatura: o projecto pedagógico, por exemplo, quando exige a participação de todas as disciplinas, mesmo que não caibam todas nele! É o instrumento pedagógico a ocupar o lugar de destaque e não o problema pedagógico que é suposto um projecto resolver. Então, o que começou por ser um instrumento, é como que elevado à condição de pedagogia, um mantra a que é necessário aderir por inteiro: o projecto pedagógico transforma-se em "pedagogia do projecto", a diferenciação pedagógica em "pedagogia diferenciada" …, e até a pergunta, essencial no desenho de um projecto, se transforma numa pedagogia: a “pedagogia da pergunta”.**

Inovar? Sim, quando é necessário inovar, mas conscientes de que a inovação não tem de ser novidade, de que a sua preocupação não é essa: impressionar pela novidade que traz. Mas não querendo impressionar pela novidade, tem, no entanto, de trazer algo de novo em si, que identifique a inovação que propõe. Do latim innovatione [renovação], manifesta-se numa forma renovada, que incorpora novas funções, necessárias para responder melhor aos novos desafios educativos; ou pode ser, simplesmente, um olhar sobre um objecto do passado, que actualiza as suas possibilidades no presente: "O mais importante não é o novo que se vê, mas o que se vê de novo no que já tínhamos visto", diria Vergílio Ferreira.*** É este olhar e só este, que se deve pedir aos professores. É com este olhar que precisamos convocar os saberes dos pedagogos do passado, que nos fizeram chegar aqui: Freinet [entusiasta das tecnologias do seu tempo, o que não teria feito com os recursos tecnológicos de que dispomos!], Montessori, Dewey, ... e tantos outros. Mas lançar o nosso olhar sobre eles não é deixar que ressuscitem numa escola, como se fosse possível uma escola Freinet, ou uma escola Montessori. Reconhecer a actualidade pedagógica de alguns dos seus instrumentos, ou mesmo todos, é uma coisa, outra bem diferente é ressuscitá-los por inteiro numa proposta que exclui, à partida, todas as outras. Daqui a importância da história da pedagogia, que não nos deixa levar ao engano.

Repito: do que a escola precisa é de definir-se pela actualidade das suas propostas, e não pela sua novidade ou da novidade dos instrumentos que usa. Ou pior, pelo nome do passado que afixamos a uma proposta para lhe dar crédito.

"Qualquer que seja a aparência da novidade, eu não mudo com medo de perder com a troca", escreveu Montaigne. Eis a máxima necessária para resistir àquela novidade feita "inovação", que nos pede adesão por impulso.

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C. Freinet e R. Salengros, Modernizar a escola, Lisboa, Dinalivro, 1977.
** Laurence de Cock, referindo-se ao que designa de «pedagogias alternativas» escreve: "No sistema educativo público, permite aos ministérios manter um discurso de «modernização» sem gastar o mínimo euro".  Quer dizer, se alguma coisa está a falhar não é por falta de apoio, mas da pouca vontade em inovar. Só que, diferentemente do que nos querem fazer crer, "mais do que a multiplicação de exortações ministeriais à inovação, ela depende também da liberdade que é deixada aos professores para fazerem experiências nas salas de aula e para se dotarem de ferramentas de acompanhamento de avaliação dos resultados. As reformas educativas recentes vão exactamente no sentido inverso. Não é, portanto, às pedagogias alternativas que é preciso apontar o dedo, mas à escolha que uma instituição faz de privilegiar umas em detrimento de outras; de as utilizar de forma distorcida tendo como objectivo camuflar as injustiças escolares" [Ler Mais >>>]. 
*** Vergílio Ferreira, Pensar, Lisboa, Bertrand Editora, Lisboa, 1992.