quarta-feira, 27 de julho de 2022

Profissão de Professor: Entre vocação, ofício, ...

 Jorge Larrosa
[excertos]

Maria Zambrano começa um texto muito curto sobre a vocação do professor dizendo que a vocação quase não é inteligível no mundo moderno e que «nem mesmo a própria palavra, "vocação", pode ser usada» Em vez de vocação, falamos de profissão como equivalente de ocupação ou meio de ganhar a vida

Para compreender o que é (ou o que era) a questão da vocação, teremos de voltar aos velhos mundos dos ofícios e dos artesanatos.

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segunda-feira, 25 de julho de 2022

Ainda a polémica sobre a disciplina de “ Educação para a Cidadania”

Maria dos Reis

Assisto perplexa ao tempo dedicado à polémica instalada num agrupamento de escolas de Vila Nova de Famalicão pelo facto de um encarregado de educação da cidade ter proibido os seus filhos de frequentarem a disciplina de Educação para a Cidadania, que faz parte do currículo da escolaridade onde se inserem e onde se matricularam, sabendo à partida que a mesma não era opcional. A Cidadania não é, não pode ser opcional. A Cidadania tornou-se práxis e tem crescido nos países desenvolvidos, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aditados pela ONU em 10 de Dezembro de 1948, que afirma que todos os homens são iguais perante a lei independentemente da cor, credo, etnia. Foi a luz ao fundo do túnel para acreditar numa melhoria de condições para o mundo em geral.

Entende-se assim por Cidadania o exercício e a prática dos direitos e deveres políticos e sociais estabelecidos na Constituição do país. Conhecer e por em prática esses direitos e deveres é uma responsabilidade colectiva. A Escola é parte integrante dessa colectividade. Tem como função desenvolver as potencialidades físicas, cognitivas e afectivas do indivíduo capacitando-o a tornar-se cidadão participativo.

A disciplina não tem programa, tem sim orientações curriculares que apontam para a abordagem de temáticas tais como: Ecologia – Defesa do Planeta - Voluntariado - Segurança - Paz - Literacia Financeira - Educação para a Saúde - Sexualidades e Igualdade de género. As temáticas são flexíveis. Não existe um manual específico. Compete a cada agrupamento organizar-se segundo os interesses dos alunos e dos encarregados de educação na medida em que as temáticas são abertas e, por norma, sugeridas pelos alunos. É assim que se passa nos meios que frequento, com o contacto que tenho com as escolas, professores e alunos. Agrada-me o facto de serem estas aulas espaços de partilha e discussão,

Por tudo isto é absurdo o “tempo de antena” que tem sido dado a um pai isolado. Representa-se a si próprio acompanhado por algumas entidades religiosas e referenciais políticos.
O programa sobre a polémica instalada e transformada em assunto nacional foi apresentado pela SIC no passado dia 21 no telejornal das 20h. Estiveram presentes os pais e os dois filhos envolvidos.
Ao assistir ao programa e depois de visioná-lo uma e outra vez foquei-me na arrogância de um “chefe da família” auto centrado que não soube alencar as razões da sua opção. Mostrou uma total antipatia por tudo que saía da sua zona de conforto. 

Vi-me a recuar no tempo e aos meus olhos “plantou-se” uma amostra de uma sociedade feudal dominada pela igreja e pelos donos dos feudos. Nesse tempo só havia “ensino doméstico” ou domesticado, “privilégio” de alguns e que ainda hoje é uma opção possível.
Desenvolvi uma agradável simpatia pelos filhos envolvidos numa polémica que não pediram. Destaco ainda a sua postura agradável e as palavras de agrado que dirigiram à escola na sua totalidade.

É de referir ainda o profissionalismo e independência da jornalista.

Nestas como noutras matérias seria importante ouvir a opinião dos alunos que são os sujeitos mais expostos.

Não pude dissociar desta polémica o papel das redes sociais a que cada vez mais crianças e jovens têm acesso sem qualquer tipo de controlo. Este problema deveria preocupar-nos bem mais.
Quanto ao caso que originou esta minha reflexão espero que seja resolvido por uma justiça independente.

A afirmação do encarregado de educação em causa de que “é a justiça que tem que descalçar a bota” - é de um profundo despudor.

Esquece-se aquele que é a Escola que se responsabiliza pelos alunos e por tudo que lhe acontece quando estão à sua guarda. É à Escola que pedimos responsabilidades quando algo de grave se passa com os nossos educandos durante o período em que lhos confiamos.

Aprender a Ler: entre as escolas de Pinóquio e de Alice - aquela do País das Maravilhas

Excertos de "Como Pinóquio Aprendeu a Ler" de Alberto Manguel,* adaptados numa montagem por Daniel Lousada

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A escola é o lugar onde a pessoa começa a provar que é responsável. É o centro de treino que “faz” alguém capaz de pagar a atenção e os cuidados da sociedade, tal como começou a ser percebido por Pinóquio, quando este diz que vai para a escola aprender a ler e a escrever, para depois ganhar dinheiro e com este compensar Gepeto, que ficou apenas em mangas de camisa, para que ele pudesse ir para a escola.

Portanto, o primeiro passo para se tornar cidadão foi aprender a ler. Mas o que significa exactamente aprender a ler? Muitas coisas:

- O processo mecânico de aprender o código escrito em que a memória da sociedade é registada;
- A aprendizagem da sintaxe que rege esse código;
- A aprendizagem de como os registos nesse código permitem conhecer de maneira profunda, imaginativa e prática, a nossa própria identidade e o mundo que nos rodeia.

Esta última aprendizagem é a mais difícil, a mais perigosa e a mais profunda; e é o que Pinóquio não conseguirá completar. Pressões de todo o tipo – as tentações com que a sociedade o desvia da sua meta – impõem a Pinóquio uma série de obstáculos intransponíveis no caminho para se tornar um leitor de verdade. Se a sociedade estabelece um sistema para satisfazer requisitos básicos e instaurar a educação obrigatória, também oferece a Pinóquio distracções desse sistema, tentações de entretenimento que não exigem pensamento nem esforço, personificadas no país da brincadeira, que Pavio, amigo de Pinóquio, descreve com estas palavras sedutoras: “Sem escolas, sem professores, sem livros […]. Isso é que é um país bom! Como deveriam ser todos os países civilizados!” Na mente de Pavio, os livros, com razão, são associados à dificuldade, e a dificuldade (tanto no mundo de Pinóquio como no nosso) adquiriu um sentido negativo que nem sempre teve.

Depois que Pinóquio sofre as suas primeiras desventuras e por fim entra na escola disposto a se tornar um bom aluno, os outros garotos começam a gozá-lo por prestar atenção ao professor: “Falou como um livro”, dizem, quando ele se defende. A linguagem pode permitir ao falante permanecer na superfície do pensamento, repetindo lemas dogmáticos e lugares-comuns a preto e branco, transmitindo mensagens em vez de vez de significados, pondo o peso epistemológico no ouvinte (você sabe o que eu quero dizer). Ou pode ajudá-lo a recriar uma experiência, dar forma a uma ideia, explorar profundamente, e não apenas na superfície, a intuição de uma revelação. Para muitos garotos essa distinção é invisível.

Apesar de todas as distracções, Pinóquio consegue galgar os dois primeiros degraus da escala social de aprendizagem: aprende o alfabeto e aprende a ler a superfície do texto. É neste ponto que ele pára. Os livros tornam-se lugares neutros, nos quais se exercita aquele código aprendido com o propósito de no fim extrair uma moral convencional. A escola preparou-o para ler propaganda. A única coisa que lhe restou fazer, depois de aprender a ler, foi repetir a cartilha como um papagaio. Ele assimila as palavras que estão na página, mas não as digere.

Esta experiência superficial de leitura é exactamente o oposto da vivida por Alice (aquela do país das maravilhas). No mundo de Alice a linguagem recupera a sua ambiguidade rica e essencial, e qualquer palavra (segundo Humpty Dumpty) pode ser usada pelo falante para dizer o que deseja. Embora Alice conteste essas hipóteses arbitrárias, essa embaralhada epistemologia é regra no País das Maravilhas. Se no mundo de Pinóquio o significado de uma história impressa é inequívoco, no mundo de Alice o significado de “Jabberwocky”, por exemplo, depende da vontade do leitor. Quando falo em “aprender a ler” (no sentido mais pleno que exploro aqui) refiro-me a algo que se encontra entre esses dois estilos e essas filosofias. A escola de Pinóquio responde às restrições da escolástica que, até ao século XVI, era o método oficial de aprendizagem na Europa. Partia-se do pressuposto de que o estudante deveria ler de acordo com o que ditava a tradição, seguindo os comentários pré-estabelecidos. O método de Humpty Dumpty é um exagero das interpretações humanistas, um ponto de vista revolucionário segundo o qual cada leitor deve abordar o texto nas condições que ele impõe. Humberto Eco limitou de forma útil essa liberdade do leitor ao apontar que “os limites da interpretação coincidem com os limites do senso-comum”. “Aprender a ler”, portanto, consiste em adquirir os meios de apropriar-se de um texto (como faz Humpty Dumpty) e participar das apropriações dos outros (como poderia ter sugerido o professor de Pinóquio). É nesse campo ambíguo entre a identidade imposta por outros e a identidade descoberta por cada um, que se encontra, acredito, o acto de ler.

Educar é um processo lento e difícil, dois adjectivos que na nossa época deixaram de ser elogiosos. Hoje em dia parece quase impossível convencer a maioria de nós das virtudes da lentidão e do esforço deliberado. Contudo Pinóquio só aprenderá a ler se não tiver pressa, e só poderá tornar-se um indivíduo pleno através do esforço exigido para aprender devagar. Seja no mundo das cartilhas que os alunos repetem como papagaios, seja no nosso, com informações quase infinitas e regurgitadas, é fácil ser ligeiramente letrado, acompanhar uma comédia na televisão entender o trocadilho de um anúncio publicitário, ler um slogan político, usar um computador. Mas para ir mais longe precisamos de aprender a ler de outra maneira, de uma forma diferente, que nos permita aprender a pensar. Por isso a aprendizagem da leitura é um processo que não acaba nunca. “As pessoas não imaginam o tempo e o esforço para aprender a ler – diz Go­ethe –. Eu venho tentando há oitenta anos, e ainda não posso afirmar que tenha conseguido”.

Mesmo que no epílogo das suas aventuras, Pinóquio se transforme num menino de verdade, no fim de contas, sem a consciência desta dificuldade, ele continuará a pensar como um boneco.

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* In "Notas para uma definição do leitor ideal", Edições Sesc

quarta-feira, 20 de julho de 2022

São os discursos dos Teórico-Práticos da Acção Educativa, que marcam a História da Pedagogia

Philippe Meirieu, in "Dictionaire inattendu de pédagogie", ESF, Paris, 2021: pp. 16-22
Versão portuguesa de Daniel Lousada
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O que é um pedagogo? 

À pergunta "O que é a pedagogia?", Jean Houssaye responde definindo "o pedagogo" como "um pratico-teórico da acção educativa. Ele procura combinar teoria e prática com base na sua própria acção, para obter uma conjunção perfeita de uma e outra, numa tarefa que é ao mesmo tempo indispensável e impossível na sua totalidade (caso contrário, seria a negação da pedagogia). Existe, de facto, um fosso irredutível entre a teoria e a prática: a prática escapa sempre, em certa medida, à teoria (não pode ser reduzida aos entendimentos teóricos que temos dela), e a teoria também excede sempre, em certa medida, a prática (é sempre possível produzir outros discursos teóricos sobre esta ou aquela acção). É nesta 'lacuna' (que tanto separa como une) que a pedagogia é 'feita'". 

São os discursos, assim produzidos, pelos prático-teóricos da acção educativa, que marcam a história da pedagogia, tais como, entre outros: as Memórias do Doutor Itard, que lutou meses a fio para tentar educar Victor de l'Aveyron, quando todos os estudiosos da época concordaram que ele era um "idiota nato"; a Carta de Stans, na qual Pestalozzi, um "cidadão honorário da República Francesa", conta como conseguiu educar as crianças miseráveis e agressivas de uma aldeia devastada pelo exército do Directório. O Poema pedagógico, no qual Makarenko conta por que razão, na colónia de Gorki, que fundou pouco depois da revolução bolchevique, teve de recusar aos seus educadores, o acesso aos arquivos das crianças aí internadas, para que não as "prendessem no seu passado"; Como amar uma criança, de Janusz Korczak, autor da primeira "Declaração dos Direitos da Criança", que explica como, nos seus orfanatos, introduziu os contratos que permitiram a emergência da liberdade; A criança maravilhada, onde Germaine Tortel descreve os alunos do jardim-de-infância a aceder, colectivamente, a uma expressão artística cada vez mais exigente; A educação pelo trabalho, onde Célestin Freinet "volta à escola dos sábios da sua aldeia", para apresentar uma educação "que parece ser a solução futura para os problemas dramaticamente urgentes da preparação das jovens gerações"; e ainda, A criança, onde Maria Montessori combina conhecimentos médicos e biológicos, reflexões filosóficas e experiências pedagógicas, para abordar, em pequenos passos, as questões vivas da educação infantil.

O que caracteriza o empreendimento pedagógico

Os textos mais emblemáticos, mais representativos, deste estranho "género literário", misturam testemunhos e profissões de fé, referências científicas e fugas poéticas, conhecimentos filosóficos e prescrições técnicas. São obras de um mundo longe dos tratados académicos reconhecidos pelo conhecimento universitário, mas que, no entanto, deixaram vestígios duradouros nas instituições e práticas educativas e, ainda hoje, podem ser fonte de inspiração para os seus leitores. De facto, o leitor é directamente confrontado com esta "fábrica" de pedagogia que Jean Houssaye evoca. Descobre pessoas que, como ele, têm de lidar com crianças que são frequentemente indisciplinadas, mas que devem acompanhar para que compreendam o mundo e contribuam para a sua renovação. Ele vê estas mulheres e homens, como ele, confrontarem-se com contradições, a hesitarem entre uma atitude atenta de esperar, para ver, e uma impaciência voluntarista, navegam à vista a fim de evitar tanto a resignação como a manipulação, e tentam, ao mesmo tempo, indicar a direcção a seguir enquanto treinam para a autonomia. 

É por isso que nenhum tratado, por muito bem documentado que esteja, pode dar conta desta experiência educativa: ela só pode ser partilhada. E deve ser partilhada. Para compreender o que nos está a acontecer. Para que não pensemos que somos os primeiros a encontrar-nos um dia num beco sem saída. Para que não passemos as nossas vidas a sentir-nos culpados. E não acusar todo o mundo de nos terem lançado em dificuldades insuperáveis... Devemos caminhar com aqueles que, apanhados neste dilema, não ficam a excomungar os seus adversários, usando e abusando das caricaturas habituais: "tirano" ou "laxista", "autoritário" ou "demissionário", "conservador de mente estreita" ou "pedagogista inveterado"! Precisamos de tentar compreender como e porquê Montessori, Freinet e tantos outros não se podem enquadrar nestas categorias, como e porquê conseguiram escapar à crispação neurótica sobre um dos dois pólos da tensão constitutiva do empreendimento educativo, sem alternar, numa oscilação psicótica, entre um e outro. Precisamos de sentir a importância desta questão e de olhar de perto para as diferentes doutrinas pedagógicas que podermos agarrar. 

O que é uma doutrina pedagógica

Porque - como terás compreendido - a pedagogia não é uma ciência. Quanto mais a investigação nas ciências da educação deva ser científica, tanto mais as práticas pedagógicas não podem, nem devem sê-lo. As "práticas educativas científicas" garantiriam, obviamente, a sua eficácia, mas à custa da inscrição indivíduos a quem seria então negado o seu estatuto de sujeitos. Passaríamos, então, de um processo educativo para um processo de fabrico de que resultaria, a longo prazo, a concretização das piores previsões da ficção científica. Digamos, então, que a pedagogia é uma "teoria prática", como Émile Durkheim a definiu, ou, melhor ainda, uma "arte de fazer", segundo a bela expressão de Michel de Certeau. 

Se olharmos agora, mais de perto, o discurso pedagógico, descobrimos que esta "arte de fazer" articula três pólos de uma forma original: um pólo das finalidades - que podem ser teológicas, filosóficas ou políticas; um pólo de conhecimentos - que diz respeito à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança, do seu ambiente sociológico ou das suas estruturas cognitivas; e finalmente, um pólo de práticas constituído por um conjunto de propostas em termos de métodos e instrumentos. O pedagogo actua sempre de acordo com um projecto, mobiliza conhecimentos e utiliza ferramentas. E, qualquer que seja o 'ponto de entrada' escolhido, a sua acção só é possível se conseguir manter estas três dimensões juntas, lucidamente, da melhor forma possível.

Além disso, estas dimensões estão sempre presentes em todos os discursos sobre educação, mesmo que algumas pessoas, por vezes, finjam esquecê-las: É o caso, por exemplo, dos defensores da "escola eficaz" ou da “política baseada na evidência”, que desqualificam a reflexão filosófica e política sobre a educação, considerando-a "ideológica", acreditando que estão assim a livrar-se do pólo das finalidades para basear as práticas educativas em “dados comprovados”. Mas esta desqualificação é em si mesma ideológica, e o cientismo é de facto, aqui, uma opção amarrada a finalidades de uma escola que pretende servir o sucesso individual quantificável, reduzido ao domínio de competências estandardizadas. Dificilmente, também, podemos passar sem conhecimentos, porque se a filosofia não prestar atenção ao trabalho sobre a criança e as condições da sua educação, só pode desenvolver prescrições gerais, ou mesmo evoluir para um pensamento mágico, dando a entender que a repetição obstinada de objectivos é suficiente para garantir a sua realização. Finalmente, a pedagogia também não pode prescindir de propostas concretas, caso contrário corre o risco de cair num discurso puramente "intencional" e de deixar os educadores completamente desamparados face às dificuldades que encontram.

Devemos, portanto, precaver-nos contra as três derivas que ameaçam a pedagogia: a deriva cientifica, que pretende deduzir práticas a partir de conhecimentos fisiológicos, psicológicos ou sociológicos e se recusa a perguntar: "Que crianças queremos formar, transmitindo que cultura e que valores, e para que sociedade?; A deriva prescritiva, que exige que os profissionais implementem certos métodos em certas instituições, ao mesmo tempo que contornam os conhecimentos fornecidos pelas ciências humanas sobre as condições da educação. E a deriva teorista, que não quer comprometer-se com a questão das práticas e recusa qualquer proposta de acção, arrastando-se numa neutralidade virginal. 

Uma "doutrina pedagógica" é, por assim dizer, uma configuração particular de finalidades, conhecimentos e ferramentas, que consegue estabilizar-se ao encontrar uma possível coerência entre estes três componentes. Uma coerência que torna esta configuração aceitável, sem a tornar num sistema homogéneo, que se imporia ao excluir qualquer debate. Porque os valores que queremos promover, os factos que atestamos e os instrumentos que propomos, têm registos heterogéneos de legitimidade: os valores são legitimados pela reflexão filosófica e política, os factos pelas manifestações elaboradas pelas "ciências positivas" e os instrumentos o que torna possível a transformação da realidade. Os valores pertencem ao domínio do desejável, os factos ao da verdade científica e os métodos ao da eficácia pragmática. Que tudo isto é coerente e constitui, num dado momento, uma doutrina pedagógica, que podemos utilizar para educar os nossos filhos é, de certa forma, milagrosa...

Uma pedagogia dentro da pedagogia?

Aqui temos uma definição estabilizada do pedagogo - aquele que procura reunir a teoria e a prática da educação -, uma possível identificação do que caracteriza o empreendimento pedagógico - o trabalho sobre a tensão fundadora entre transmissão e emancipação - e uma estabilização aceitável do que constitui uma doutrina pedagógica - a articulação coerente de finalidades, conhecimentos e práticas.

Poderíamos provavelmente deixar as coisas assim. No entanto, isto seria esquecer que tudo o que acabo de afirmar aqui constitui, em si mesmo, um discurso pedagógico. E que este discurso - tão heterogéneo e composto como todos aqueles que citei - não pode de forma alguma reivindicar uma posição de superioridade. Não posso de forma alguma reivindicar qualquer 'objectividade científica' que me colocaria em posição de decidir sobre a verdadeira e falsa sub specie æternitatis [1]. Sou um pedagogo, menos prestigiado e menos realizado do que todos aqueles que estudei. Ofereço ao leitor apenas pontos de vista discutíveis, experiências a serem questionadas, perspectivas a serem discutidas. Para que o leitor, numa salutar mise en abyme [2], possa, por sua vez, construir a sua própria pedagogia.

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[1] O termo sub especie aeternitatis (latim, “sob o aspecto da eternidade”) foi consagrado por Spinoza para designar a necessidade do que é eterno (aeternitas), em contraste com a contingência de coisas e eventos temporais que têm duração.

[2] Expressão usada pela primeira vez por André Guide ao falar sobre as narrativas que contêm outras narrativas dentro de si.