quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Sobre a "Pedagogia Espectáculo"

Philippe Meirieu


Versão condensada em português de Daniel Lousada 
[DISPONÍVEL TAMBÉM EM PDF >>>]

No domínio da educação, há certas tomadas de posição simplesmente irritantes, em obras de divulgação pedagógica como no livro On achève bien les écolier, de Peter Gumbel [autor britânico radicado em França], um panfleto que recupera teses bem conhecidas desde há décadas, sobre os efeitos prejudiciais da competição desenfreada entre alunos, o carácter inutilmente stressante das avaliações sistemáticas, o cansaço provocado pelo excesso de exercícios repetitivos e de trabalhos de casa, a ineficácia de programas idiotamente enciclopédicos, etc.

Quando apareceu, os grandes meios de comunicação social logo se apressaram a falar do livro como se do acontecimento do século se tratasse (...).

Entendamo-nos: estou, em grande parte, de acordo com algumas das constatações de Peter Gumbel. Até poderia fazê-las minhas numa conversa de amigos e não apenas como provocação. Mas não as teria apresentado de maneira tão caricatural, sem tomar algumas precauções, sem evocar, pelo menos, os argumentos dos meus adversários. Quanto mais não fosse porque no âmbito educativo, mais do que em qualquer outro, creio estarmos obrigados a aplicar o “princípio da tolerância”, enunciado por Paul Ricoeur: “A tolerância não é uma concessão que fazemos ao outro; é reconhecer o princípio de que uma parte da realidade me escapa”.

Não compreendo como é que declarações tão radicais, tão pouco argumentadas histórica e filosoficamente, que apresentam, como novidades extraordinárias, banalidades que se vêm arrastando desde há um século, na bibliografia pedagógica, podem receber tão ampla aprovação. Até porque, se queremos verdadeiramente animar a polémica, mais vale referir certos textos dos inícios da Educação Nova, como o famoso epigrama de Adolfo Ferrière.*

A questão é que Peter Gumbel não disse nada de diferente deste poema, só que o disse com menos talento. O que não impediu os comentadores de serviço, ignorantes da história da pedagogia, de o encontrarem “refrescante” (...), decisivo para o futuro da educação”. Enaltece-se, assim, um pensamento que tem sido relativizado, porque objecto de numerosas e diversas interpretações, sobre o qual os pedagogos se interrogam: (...) Que quer dizer “a actividade da criança deve servir para alguma coisa”? Estamos a falar de uso imediato, de uso futuro, de uso pessoal e cultural? Pode-se opor tão facilmente as mãos e o cérebro? Não haverá um ir e vir permanente entre ambos? O silêncio e a memória serão verdadeiramente inúteis? O aluno pode investigar ciência sem que alguém o guie na sua investigação? Poderá compreender o mundo graças a modelos científicos, apresentados pelo adulto de forma magistral e, ainda assim, aceder à alegria de compreender? Como é possível que um século depois de Ferrière, se passem por alto todas estas perguntas? E o que é mais estranho, como é possível que os defensores oficiais da anti-pedagogia, grandes intelectuais ou pequenos fazedores de opinião das redes sociais, percam o controlo quando alguém apresenta, comedidamente e com infinita prudência, algumas teses sobre a necessidade de diferenciar a pedagogia (...), e fiquem misteriosamente silenciosos perante panfletos pouco escrupulosos na sua enunciação, apesar de terem muito mais impacto na opinião pública do que os escritos pedagógicos que estigmatizam? Como explicar que os tenham tratado – como me trataram tantas vezes – de “impostor” ou de “coveiro” da cultura?

Há algo particularmente irritante, quando vemos as intervenções das estrelas da “pedagogia espectáculo”, a navegar, sem correr o menor risco, nas águas dos lugares comuns mais consensuais. (...) Veja-se, por exemplo, Ken Robinson na sua conferência TED mais célebre. Com muita habilidade e humor, explica que todas as crianças são espontâneas, criadoras e que o sistema escolar, ao submetê-las a exercícios absurdos e estandardizados, mata nelas toda a criatividade. Convoca-nos a “respeitar mais a infância”, a “cultivar cuidadosamente a sua imaginação”, e exorta-nos a inventar uma educação “que assente na busca incessante da capacidade criadora de cada indivíduo”.

Quem poderia opor-se a tais intenções gerais tão generosas? Ken Robinson brinca no registo dos lugares comuns mais sedutores e, com isso, todos os pais podem acreditar que os seus “rebentos” são espontaneamente génios e que, se não conseguirem sê-lo na escola, é porque esta os arruinou profundamente. Quanto aos professores que descobrem que os seus alunos não são nada criativos (...), podem contentar-se em condenar o "sistema" e apelar à "revolução", para não terem de enfrentar a mínima "mudança" concreta nas suas práticas.

A verdade é que a "natureza criativa" da criança não foi atestada nem repartida de forma equitativa no campo social. Por outro lado, não é assim tão certo que, o que tomamos por uma regressão do imaginário, à medida que a criança cresce, não seja, afinal, a descoberta do princípio da realidade que, durante algum tempo, restringe o campo do possível, mas que também dá acesso ao conhecimento que leva a um verdadeiro domínio do mundo: Como sabemos, o pensamento científico é simultaneamente abertura e renúncia; implica formular hipóteses e testá-las, a fim de identificar quais são os verdadeiros instrumentos de inteligibilidade do mundo, "saberes estabilizados", que permitem aos seres humanos partilhar conhecimentos comuns.

Além disso, a exaltação da “criança criativa”, perante a qual os adultos só podem maravilhar-se, o uso constante da metáfora hortícola, que apresenta a criança como uma planta que tem em si todo o potencial para florescer naturalmente, sob o nosso olhar extasiado, ignora as terríveis desigualdades sociais resultantes, em particular, da educação familiar.

É por isso que não podemos contentar-nos – mesmo que o façamos com a maior habilidade – em pregar a abstenção educativa para "deixar a criatividade desenvolver-se livremente". Mais ainda: não podemos insinuar que a criatividade é um dom, que apenas necessita que não se lhes imponham restrições escolares. A criatividade é algo que também se “ensina”; requer uma pesquisa permanente do professor para encontrar situações estimulantes (...), uma atitude positiva e exigente de expectativas em relação a cada aluno. Podemos certamente assumir que Ken Robinson sabe tudo isto... E no entanto, dando a entender o contrário, enche o seu público de ilusões, ao mesmo tempo que anestesia, com o seu optimismo absurdo, qualquer verdadeira inventividade pedagógica.

Daqui a minha irritação: na circulação de lugares comuns pedagógicos que, por trás de uma unanimidade de fachada, podem levar ao desenvolvimento de teorias e práticas contraditórias que, na realidade, perseguem objectivos opostos. Ora bem, os nossos filhos merecem muito melhor. Eles merecem, ao menos, um pouco de lucidez. Eles merecem o nosso esforço em descobrir as verdadeiras questões pedagógicas e políticas em jogo na nossa educação. Merecem adultos com os pés no chão, que não reneguem nada, mas que também não se deixem enganar.

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* In Pédagogie des lieux communs aux concepts clés, ESF Éditeur, Paris: 2016

sábado, 27 de agosto de 2022

Do fracasso que leva à falta de motivação

Philippe Meirieu
Versão portuguesa de Daniel Lousada, a partir do original "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés", Paris, ESF Éditeur, 2013

Desde há muito que manifesto a irritação que me desperta a frase: “Esse aluno não atinge os objectivos porque não está motivado". Então costumo inverter esta afirmação com a pergunta: E se, pelo contrário, não estiver motivado porque não temos sido capazes de ajudá-lo a alcançar os objectivos?

Não há nada mais desmotivador do que o fracasso, sobretudo quando se repete e, progressivamente, nos resignamos a ele, até considerá-lo uma fatalidade da qual não é possível fugir.

Como pode alguém sentir-se motivado quando parece que o sucesso está fora do seu alcance, quando não consegue vislumbrar o mínimo progresso, apoiar-se numa aquisição bem-sucedida, para projectar-se no futuro e imaginar-se diferente? É assim que demasiadas crianças e adolescentes se sentem dia a dia: a sensação de um horizonte invisível, de estarem proibidos não só do sucesso escolar, mas também de todas as formas de sucesso social valorizadas. É desta forma que se esgotam a repetir – porque lhes exigem que o façam – as mesmas tentativas improdutivas, para finalmente constatarem, com maior ou menor resignação, raiva até, que estão definitivamente condenados ao fracasso.

Ao fim de algum tempo [muito ou pouco, conforme os casos] a acumular fracassos, o adolescente, para fugir do peso da derrota, acaba por organizar o seu próprio fracasso, porque é a única coisa em que realmente pode ter sucesso. Com efeito, o fracasso gera, com muita frequência, o medo de correr o risco de fracassar: há uma espécie de entorpecimento da motivação, algo desprovido das suas raízes e incapaz de dar ao jovem a possibilidade de se projectar no futuro. Por vezes desenvolve uma vontade deliberada de falhar, muitas vezes acompanhada de formas de violência e autodestruição que lhe permitem dizer a si próprio: “Pelo menos quem fez isto fui eu!”. E este processa leva por vezes a esta última contradição: dar-se à morte [escolar, profissional, afectiva, psicológica, física] para tentar recuperar o controlo da própria vida.

Esta obstinação em fabricar o próprio fracasso está associada, sobre tudo, à dificuldade em criar vínculos com os demais e, em particular, com os adultos. Com frequência, alguns jovens preferem rejeitar qualquer apoio exterior, por mínimo que seja, para se instalarem numa omnipotência suicida: à ajuda do outro, preferem fracassar sozinhos.

É evidente que esta dificuldade em criar vínculos pode ter as suas raízes numa história pessoal particularmente acidentada, mas como é possível não ver que ela está também articulada, em grande medida, com situações escolares, no mínimo, inadequadas? Como não reconhecer que o desmoronamento  das relações entre jovens e adultos, numa escola onde o trabalho colectivo já não é elemento aglutinador de um compromisso comum, mantém e até promove esta dificuldade em criar vínculos?

 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

Profissão de Professor: Entre vocação, ofício, ...

 Jorge Larrosa
[excertos]

Maria Zambrano começa um texto muito curto sobre a vocação do professor dizendo que a vocação quase não é inteligível no mundo moderno e que «nem mesmo a própria palavra, "vocação", pode ser usada» Em vez de vocação, falamos de profissão como equivalente de ocupação ou meio de ganhar a vida

Para compreender o que é (ou o que era) a questão da vocação, teremos de voltar aos velhos mundos dos ofícios e dos artesanatos.

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segunda-feira, 25 de julho de 2022

Ainda a polémica sobre a disciplina de “ Educação para a Cidadania”

Maria dos Reis

Assisto perplexa ao tempo dedicado à polémica instalada num agrupamento de escolas de Vila Nova de Famalicão pelo facto de um encarregado de educação da cidade ter proibido os seus filhos de frequentarem a disciplina de Educação para a Cidadania, que faz parte do currículo da escolaridade onde se inserem e onde se matricularam, sabendo à partida que a mesma não era opcional. A Cidadania não é, não pode ser opcional. A Cidadania tornou-se práxis e tem crescido nos países desenvolvidos, a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aditados pela ONU em 10 de Dezembro de 1948, que afirma que todos os homens são iguais perante a lei independentemente da cor, credo, etnia. Foi a luz ao fundo do túnel para acreditar numa melhoria de condições para o mundo em geral.

Entende-se assim por Cidadania o exercício e a prática dos direitos e deveres políticos e sociais estabelecidos na Constituição do país. Conhecer e por em prática esses direitos e deveres é uma responsabilidade colectiva. A Escola é parte integrante dessa colectividade. Tem como função desenvolver as potencialidades físicas, cognitivas e afectivas do indivíduo capacitando-o a tornar-se cidadão participativo.

A disciplina não tem programa, tem sim orientações curriculares que apontam para a abordagem de temáticas tais como: Ecologia – Defesa do Planeta - Voluntariado - Segurança - Paz - Literacia Financeira - Educação para a Saúde - Sexualidades e Igualdade de género. As temáticas são flexíveis. Não existe um manual específico. Compete a cada agrupamento organizar-se segundo os interesses dos alunos e dos encarregados de educação na medida em que as temáticas são abertas e, por norma, sugeridas pelos alunos. É assim que se passa nos meios que frequento, com o contacto que tenho com as escolas, professores e alunos. Agrada-me o facto de serem estas aulas espaços de partilha e discussão,

Por tudo isto é absurdo o “tempo de antena” que tem sido dado a um pai isolado. Representa-se a si próprio acompanhado por algumas entidades religiosas e referenciais políticos.
O programa sobre a polémica instalada e transformada em assunto nacional foi apresentado pela SIC no passado dia 21 no telejornal das 20h. Estiveram presentes os pais e os dois filhos envolvidos.
Ao assistir ao programa e depois de visioná-lo uma e outra vez foquei-me na arrogância de um “chefe da família” auto centrado que não soube alencar as razões da sua opção. Mostrou uma total antipatia por tudo que saía da sua zona de conforto. 

Vi-me a recuar no tempo e aos meus olhos “plantou-se” uma amostra de uma sociedade feudal dominada pela igreja e pelos donos dos feudos. Nesse tempo só havia “ensino doméstico” ou domesticado, “privilégio” de alguns e que ainda hoje é uma opção possível.
Desenvolvi uma agradável simpatia pelos filhos envolvidos numa polémica que não pediram. Destaco ainda a sua postura agradável e as palavras de agrado que dirigiram à escola na sua totalidade.

É de referir ainda o profissionalismo e independência da jornalista.

Nestas como noutras matérias seria importante ouvir a opinião dos alunos que são os sujeitos mais expostos.

Não pude dissociar desta polémica o papel das redes sociais a que cada vez mais crianças e jovens têm acesso sem qualquer tipo de controlo. Este problema deveria preocupar-nos bem mais.
Quanto ao caso que originou esta minha reflexão espero que seja resolvido por uma justiça independente.

A afirmação do encarregado de educação em causa de que “é a justiça que tem que descalçar a bota” - é de um profundo despudor.

Esquece-se aquele que é a Escola que se responsabiliza pelos alunos e por tudo que lhe acontece quando estão à sua guarda. É à Escola que pedimos responsabilidades quando algo de grave se passa com os nossos educandos durante o período em que lhos confiamos.