domingo, 17 de agosto de 2025

Os sentidos que o poema nos traz e o exemplo da pintura.

ÚLTIMA ACTUALIZAÇÃO: 25.08.2025

NOTA PRÉVIA

Sendo um daqueles textos que buscam a construção de uma prática (uma didáctica impossível, como qualquer didáctica — a didáctica que é a negação mesma da didáctica, na expressão de Sérgio Niza), este texto estará sempre aberto a revisões, até no título. Não será nunca um texto acabado. Pode até ser revisto com os contributos de comentários.

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Olho os quadros de um determinado pintor (modernista) e não entendo o que vejo. Onde é que ele quis chegar com isto? — interrogo-me. Mas não me dou ao trabalho de procurar saber. Não há nada neles que me peça esse esforço [Não há neles qualquer promessa de sentido). Espanta-me apenas o valor que lhes é atribuído. Se me dissessem que poderia escolher para mim um dos seus quadros, primeiro perguntava: Qual é o mais valioso? — Em termos monetários, claro.

Olho os quadros de um outro pintor (também modernista) e também não entendo. Mas aqui não me assalta a pergunta. Não me faz falta entender os seus traços. Basta-me olhar. Não me importava de ter um na parede da minha sala, frente ao sofá, para estar ali sentado só a olhar. O poema Cabeça no ar de Manuel António Pina >>> (um poema para crianças, diz-se) dá conta deste estado, um estado que é convidado a experimentar quem é atingido por um objecto de arte: «os olhos a olhar (embora sem ver)… e ficar quietinho a ser». 

Com muitos poemas de que gosto passa-se algo do género, se bem que não inteiramente: uma pintura entra-me por inteiro olhos adentro, mas o poema entra à medida que o tacteio com a voz, que para George Jean tem de ser "voz alta", mesmo que ouvida em silêncio. E é da "qualidade" desta voz que lhe consigo emprestar (ou de quem o lê para mim) e lhe dá forma, que depende a minha adesão ao poema: A voz que faz frente ao sentido, como diz Julien Craeq [1]. Mas o poema para me fazer gostar, ou encontra-se com a minha voz às primeiras leituras ou então desisto [2] — ou não fosse a poesia «pesquisa de som perseguindo sentidos» [3]. Encontrando-se, o sentido resiste, claro. No poema resiste sempre. É sentido pressentido, promessa de sentido que faz voltar ao poema uma e outra vez: o que é que ele me diz que eu possa dizer sobre ele?

Levo para a aula A porta — um poema de Daniel Faria >>>. Digo que é um poema de que gosto muito, mas não sei dizer porquê [4] — Há tantas coisas de que gostamos, e na hora de dizer porquê não encontramos palavras para dizê-lo, apenas nos ocorre dizer porque sim! [5] —. E convido as crianças a emprestar-lhes a voz antes de o ouvirem na minha. Não é uma tarefa fácil para uma criança de nove anos. Mas não era a primeira vez que eram desafiadas a emprestar a voz a um poema. E sabiam que quando eu lhes dava a ler (para serem capazes de o dizer) um poema de que gostava muito, ele revelava-se por inteiro na voz — Não sei se era do poema que gostavam ou se da voz que o revelava e os prendia. Não raras vezes, depois de lhes ler um poema, terminava com duas perguntas (retóricas) em jeito de exclamação: Não entenderam nada, pois não? Mas é lindo, não é?! Sabiam que quando entrávamos no mundo da poesia, era na busca do prazer que nos envolvíamos. Tudo o mais era secundário. Podiam correr o risco de não entender. Não entender, nesta idade não é risco. É uma possibilidade... sem riscos. Porque, quando o fim que nos une é aprender a gostar, não faz falta perguntar: «Onde é que ele quis chegar com isto?» Quando muito fica no ar a pergunta: «O que há aqui que me faz gostar tanto disto?» Aqui dou-me conta de que não será por acaso, talvez, que muitos poemas se apresentem sem título. E o mesmo pode ser dito relativamente às diversas formas de expressão artística.

Ouço António Carlos Cortez, professor e poeta, interrogar-se, «como é possível que os alunos entendam a poesia de Sophia de Mello Breyner, sem antes lerem um ensaio relativamente simples sobre a sua obra?» [6] E dou-me conta da sorte que tive de não ter de ensinar literatura. Como disse, pude dizer aos meus alunos: «tenho um poema, de que gosto muito, para vos apresentar, mas não sei porquê!» Não sei se um professor do Ensino Secundário sente a liberdade de dizer algo assim. Como pode? Ensina literatura, gosta dum poema e não sabe porquê? E no entanto é esta liberdade de dizer não sei, que lhe dá a possibilidade de partir com os seus alunos para a leitura de um poema, unicamente atentos aos sentidos pressentidos, e à promessa de sentidos a conquistar. Tal como com um quadro que impressiona, perante o qual só conseguimos exclamar: uau! Depois, claro, pode vir o ensaio, que nos ajuda a desvendar os segredos que esconde e nos faz gostar mais ainda. Mas só depois. «Sou extremamente naif, espontâneo, uma obra de arte ou me atinge ou não me atinge — diz José Gil —. Se sou atingido posso perguntar: porquê? E então começo a raciocinar» [7]. Delfim Santos, por sua vez, numa carta a Jorge de Sena, diz: «Há transparência e opacidade na poesia. Hoje visitou-me a opacidade» [8].

Acho que é necessário repensar o percurso do 1º Ciclo à Universidade, de forma a que o aprender a gostar esteja sempre presente no horizonte. Porque não é possível fazer o aluno gostar da poesia de Sophia se der com ela apenas à entrada do Secundário, numa relação obrigatoriamente mediada por ensaios. A sua poesia é de leitura obrigatória neste nível de ensino? Porque não fazê-la entrar, devagarinho, no ouvido, pela voz do professor, das vozes de quem domina a sua partitura >>>, logo a partir dos primeiros anos de escolaridade, naquele tempo em que o que importa é, no dizer de António José Saraiva, «a língua sonora que percorre os vários graus da escala»? Ou quem diz Sophia da Mello Breyner diz Mário de Sá-Carneiro >>>, ou…

Dê Éle

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[1] Cit. por Georges Jean, A leitura em voz alta, Instituto Piaget, Lisboa, 2000: p. 135. — Por isso é que ouvir o poema na sua melhor voz, ajuda a aceder aos seus sentidos. 

[2] Há muitos poemas de poetas que aprecio, que abandonei logo na entrada dos primeiros versos. Não havia uma voz a impressionar-me o ouvido. Depois ouço-os na voz de quem sabe dar-lhe a voz que melhor o serve (no caso, um actor) e tudo se altera. «(...) há no poema uma oralidade viva, um sabor da palavra gostosa (...). É para ser entoado por recitadores, e não analisado por gramáticos — diz António José Saraiva —. Por vezes interessa pouco o que ele diz, e vale só a língua sonora que percorre os vários graus da escala, uma palavra que esplende, um som rouco de queixa ou um gesto teatral que se entrevê» (Citado por António Fonseca, em Os Lusíadas como nunca os ouviu, Caleidoscópio - Edição e Artes Gráficas, S.A., Casal de Cambra, 2016). Por isso uma leitura acompanhada pela voz de quem reconhece muito bem a sua partitura ajuda muito à adesão ao texto.

[3] António Carlos Cortez, Tempo exacto: antologia pessoal, Jaguatirica, Rio de Janeiro, 2015 (versão digital).

[4] Não sei mesmo porquê. É algo que acontece com os poemas de que gosto (até na prosa): não sei ainda, porque não encontrei, o que dizer sobre ele. Como ficou dito atrás, são os sentidos não revelados, apenas pressentidos, que nos faz voltar ao poema, ao texto, uma e outra vez: dir-se-á, enquanto a promessa de sentido estiver presente.

[5] Não sei se Neruda mesmo, ou se a personagem que o representa em O carteiro de Pablo Neruda, quando interpelado sobre o significado de um dos seus versos, diz: «(...) não sei dizer com palavras diferentes das que usei. Quando se explica a poesia torna-se banal. Melhor que qualquer explicação é a experiência de sentimentos que a poesia pode revelar, e uma alma suficientemente aberta para entendê-la». 

[6]  Programa Prova Oral, da Antena 3 VER >>>

[7] José Gil, A última lição, Contraponto, Lisboa, 2025: p. 209 — «Por exemplo — diz José Gil — quando vejo pendurada uma pá, um ready-made do Duchamp, para mim é uma pá. (...) Mas há pessoas que dizem: "que maravilhosa pá!"».

[8] Jorge de Sena, Delfim Santos e Manuela de Sousa Marques. Correspondência 1943-1959, Guerra & Paz, Lisboa, 2012: p. 68-69.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

Educação para a cidadania: área disciplinar ou área curricular não disciplinar?

José Gil dizia em 2019 [*] «
que estamos a mudar de paradigma sem que tenhamos aquele para o qual queremos mudar. Isto em tudo, como é o caso da Educação para a Cidadania. Havia antes uma educação para a transmissão e acumulação na área das Humanidades, agora é da Cidadania. O que é que os professores vão ensinar?» NADA — 
atrevo-me a dizer — se insistirmos em tratar como disciplina o que não é.

Educação para a cidadania e educação para a transmissão e acumulação na área das humanidades são dois tipos de educação que funcionam em planos distintos, mas se tocam e completam [**]. Dizendo isto, parto do princípio de que a educação para a cidadania não veio (ou se veio não deveria ter vindo) para roubar o espaço ocupado por outras áreas, mas para alargar o espaço que o modo de transmissão e acumulação, próprio das diferentes áreas disciplinares, convida a alargar. Diria que a educação para a cidadania obriga-nos também a viver naquele espaço que vai daquilo que dizemos àquilo que fazemos, enquanto professores.

A Educação para a Cidadania não tem vocação de disciplina. É área curricular não disciplinar. Só foi “elevada” (ou melhor, despromovida) à condição de disciplina porque os 2º e 3º Ciclos e Secundário, por força da organização do seu currículo (um professor/uma disciplina), não se dão bem com conteúdos transdisciplinares. Ora, transformar em disciplina o que não tem vocação para o ser, só poderia dar no que deu. Poderia ser de outra forma? Podia. Mas isso implicaria libertar os professores das amarras burocráticas que os tolhem, que fazem da tradução de uma ideia numa prática um registo interminável de dados, em toneladas de papeis (ou pixels), que nem as teses de doutoramento mais complexas conseguem produzir. E que, já agora, ninguém lê.

No 1º Ciclo, a Educação para a Cidadania é área curricular não disciplinar, e nem por isso os conteúdos a trabalhar deixaram de ficar bem identificados. Cabe ao professor abordá-los pelo lado das disciplinas que melhor os servem; ou por uma situação problema que leva à construção de um projecto, não disciplinar, de natureza curricular (porque todos têm de ficar a saber o que aprenderam com isso) — há professores que abordam muitos conteúdos das áreas disciplinares, seguindo esta via. Se bem que, para isso, o façam de forma “clandestina”, para contornar o espartilho que é a organização da sua agenda semanal, por disciplinas, que lhes é imposta, segundo a fórmula em uso nos outros níveis de ensino, contrária à natureza do seu currículo. LER>>>

A dificuldade dos níveis de ensino pós 1º Ciclo, em se organizarem à volta de áreas curriculares transdisciplinares, já vem de longe. Do que me lembro, vem do tempo da “Área escola”, nascida da reforma ou revisão curricular (como lhe queiram chamar), de Roberto Carneiro, e depois rebaptizada de “Área de projecto”: primeiro foi a dificuldade no “encontro de vontades” entre disciplinas, e depois a avaliação a chegar como o “elefante na sala” a tolher tudo e todos. Acho que (ainda) não conseguimos ultrapassar isto. E não conseguindo…

Talvez seja mesmo como José Gil apontou: «Estamos a mudar de paradigma, sem que tenhamos aquele para o qual queremos mudar». Ou então temos, mas falta explicá-lo e encontrar forma de traduzi-lo numa prática. Porque, pelo que temos visto, aquilo que temos não serve.

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[*] Entrevista concedida ao D.N. 04.01.2019, conduzida por João Céu e Silva.

[**] Educação e instrução, na distinção tradicional, em relação às quais temos dificuldade em encontrar uma prática consequente que as faça uma só.

RELACIONADO COM ESTE TEMA LER: Em vez de educar para a cidadania, porque não educar para a felicidade? >>>

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Risco Político

Na personalidade de cada um de nós existe um defeito ao qual somos mais propensos, uma fraqueza própria, um traço que prejudica especialmente a harmonia das nossas relações com os outros. Para uns será a cobardia, para outros os ciúmes, para alguns a indiferença ou a falta de generosidade. Da mesma forma, escreveu Aristóteles, cada sistema político tem um risco característico que habita no seu seio e ameaça fazê-lo fracassar. De acordo com o filósofo grego, no caso da democracia, esse perigo chama-se demagogia

Demagogia é uma antiga palavra grega que significa «arrastar o povo». Para Aristóteles, esta descreve uma forma de governar na qual os argumentos são substituídos por apelos aos medos, preconceitos, amores e ódios dos cidadãos. Implica abordar os debates através da linguagem dos sentimentos e impedir, inclusive, a possibilidade de uma argumentação serena sobre a ação política. Os demagogos representam-se como salvadores em momentos de crise acentuada e, se conseguirem conquistar o povo, podem mudar o rumo do regime político para derivas mais autoritárias. Foi Aristóteles quem individualizou e explicou pela primeira vez a demagogia, definindo-a como a «forma corrupta ou deteriorada da democracia». Aristóteles achava que as fórmulas através das quais os povos se organizam são mutáveis e dinâmicas, de maneira que toda a conquista se pode alcançar, mas também é reversível, estando em permanente risco. Por isso, é saudável desconfiar de quem, na contenda política, recorre às emoções primárias para ser o primeiro.

Irene Vallejo
Alguém falou sobre nós — Ensaios sobre o mundo actual, à luz da antiguidade clássica. 
Bertrand Editora, Lisboa, 2023

terça-feira, 22 de julho de 2025

A escrita como fala, que dá tempo ao pensamento, e o elogio do texto livre

«Mesmo que mais ninguém leia, vale mesmo a pena escrever, porque faz com que nos tornemos leitores de nós próprios» — leio em “Como escrever”, de Miguel Esteves Cardoso [*]. Uma prática que cultivo, porque me incutiram a escrita como forma de pensar. «Porque escrever é a única maneira de saber (ver) o que está dentro da cabeça» — leio também em M. E. Cardoso. Eis uma bela ideia... LER MAIS>>>