sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Crescer em Humanidade. Quando o pedagogo se encontra com o filósofo: notas de uma entrevista

Luís Goucha
[Também disponível em PDF>>>]

Philippe Meirieu [pedagogo] e Abdennour Bidar [filósofo] encontram-se na escrita do livro “Crescer em Humanidade”. Na entrevista ao “Café Pédagogique” lamentam as controvérsias que cercam a pedagogia de ataques cegos, que não aproveitam a ninguém e confundem o espaço público em vez de o iluminar. Recusando esta lógica, decidiram aproveitar o tempo que os juntou na escrita deste livro, para reflectir sobre o que importa, hoje, na educação, cada um com a sua sensibilidade e referências de análise.

Faire société”* 
é o tema  que abre o livro. Sem se deter na observação das fracturas sociais e aumento do comunita­rismo**, debruça-se antes sobre as mudanças antropológicas que estamos a viver, questionando-as na busca de respostas: como é que as escolas são afectadas por estas mudanças e como enfrentá-las? Isto mostra-nos, de imediato, a ausência de uma direcção clara, de um “projecto educativo fundador”. Philippe Meirieu e Abden­nour Bidar defendem, então, que a educação e a escola só recuperarão a sua legitimidade social se exprimirem um projecto educativo de emancipação colectiva, que questione a procura cega da “eficiência escolar”, assente na ló­gica da “evi­dência”. 

Os autores reforçam a importância da conciliação entre autoridade social e emancipação assente no diálogo, tal como definido por Merleau-Ponty, que explica que "os pensamentos dos outros são os seus pensamentos, não sou eu que os formo, embora os agarre assim que nascem: a objecção que o interlocutor me faz, retira de mim pensamentos que eu pensava não possuir, de modo que, se eu lhe empresto pensamentos, ele, em troca, força-me a pensar."

Ao reverem Bachelard que, no final da "La Formation de l'esprit scientifique", considera que a escola não deveria ser modelada pela sociedade, mas aquela a contribuir para a construção desta, interrogam-se sobre a possibilidade de uma mudança radical de paradigma na educação. Tudo isto daria a possibilidade de nos mobilizarmos para construir, ao mesmo tempo, uma instituição e uma sociedade, com valores capazes de construir um futuro, no futuro, ultrapassando ajustamentos na distribuição de poderes, na organização de programas, etc. O que implicaria, neces­saria­mente, um debate profundo à volta da liberdade pedagógica.

Recusando a liberdade pedagógica como porta aberta a caprichos individuais, apela a que nos interroguemos sobre como esta pode contribuir para a unidade do sistema, e em que condições este sistema pode encorajar a liberdade pedagógica dos seus actores. Insistem na ideia de que questão da liberdade pedagógica e da coerência do sistema é essencial, mas que a coerência do sistema não pode continuar a sobrepor-se à liberdade pedagógica. Embora considerando que a crise de recrutamento de professores está, em larga medida, ligada à questão remuneratória, acreditam que o problema do reconhecimento dos professores não é apenas material, mas também simbólico. O apelo a fazer vai, assim, no sentido de que os professores sejam considerados como actores e autores responsáveis e não como meros executantes de processos estandardizados.

Uma “escola de tecelagem” é a proposta. Uma escola onde são tecidas ligações entre todos, se tecessem laços entre os humanos e o planeta, profundamente solidários. Uma escola construída em redor de um colectivo solidário à escala humana. Uma escola em que o “mínimo gesto” esteja em conformidade com os princípios educativos: acesso à liberdade, igualdade no direito de acesso de todas e todos à educação e à prática concreta e quotidiana da fraternidade, através da ajuda e mútua cooperação.

Demasiadas vezes, as nossas instituições são esquizofrénicas: exibem ambições e traem-nas alegremente nas suas práticas. Abdennour e Meirieu quiseram escapar a este defeito e perguntaram-se uma e outra vez: como encarnamos os nossos valores nas nossas práticas?

__________________

* Da capacidade ou vontade de cada pessoa, ou grupos de pessoas, considerar o outro, reconhecer a sua existência e compreendê-lo.
** Philippe Meirieu distingue sociedade de comunidade. O que caracteriza uma co­munidade são os afectos, as tradições, os laços; pertencer a uma comunidade re­sulta de uma escolha. Numa sociedade os afectos são importantes, obviamente, mas as pessoas não se escolhem entre si; o ci­mento que as mantém juntas são as re­gras.

sábado, 24 de setembro de 2022

Sou marcado pelo meus erros... E ainda bem!

Jean Cocteau s'adresse... á l'An 2000
Daniel Lousada

«É possível que o que chamamos de progresso seja, de facto, o desenvolvimento de um erro», ouço dizer o poeta Jean Cocteau, a falar em 1962 [um ano antes da sua morte] para os jovens dos anos 2000 [VER VÍDEO]. E, por momentos, interrogo-me: Em que ponto estamos e até onde somos capazes de contrariar o desenvolvimento deste erro? Pergunta sem resposta, obviamente, tipo: como posso acabar com a fome ou o insucesso educativo no mundo? Há quem diga, aliás, numa visão profundamente pessimista, que, estando o homem na origem do progresso e a marcar o seu desenvolvimento, haveremos de chegar, inevitavelmente, de erro em erro, ao erro final!

Como qualquer outro, sou certamente um ponto desta engrenagem, a que chamamos progresso, a contribuir, consciente ou inconscientemente [mais inconsciente que consciente, provavelmente] para o seu desenvolvimento. E sem perspectiva que possa traçar, que me desvie de um erro final que desconheço, e numa visão que procuro optimista, digo apenas que só sei navegar à vista, com o que me é dado ver, sujeito aos erros de perspectiva que influenciam a rota das viagens em que me envolvo. É o erro que me marca, direi então. E ainda bem! Os meus sucessos [se é que os tive] na vida, ou na profissão que escolhi, nasceram dos meus erros! Erros de perspectiva que me obrigam, quando percebidos, a deslocar-me até outros pontos de vista, que apontam a perspectiva rumo ao lugar que procuro. Pois que, sendo um "ponto de vista" – como diz leonardo Boff – uma vista a partir de um ponto, se o ponto onde me encontro mudar, a vista será diferente e outra a perspectiva em que me apoio. Porque só podemos agir sobre o que se encontra perto de nós, dir-se-á então: «Pensar globalmente e agir localmente».

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Da Leitura e resistência à Escrita

Daniel Lousada

«Nos liceus, o ensino do português é um exercício burocrático, um inferno gramatical», leio na página de Luís Osório [1]. E passando os olhos pelos comentários, retenho: «O português é completamente diferente de há 15/20 anos (até menos). A maioria cria uma enorme resistência à escrita porque não traz consigo hábitos de leitura». Tanto quanto julgo saber da minha relação com a escrita, não creio que este comentário reflicta, inteiramente, o que acontece.

Há tempos, ao falarmos do que andávamos a ler, um amigo diz-me: «Não tenho lido nada de especial. Uma coisa daqui, outra dali... Ultimamente, não me tem puxado a escrita!». Com muitos de nós, por estranho que pareça, é a escrita que puxa a leitura; é o "projecto" de escrita que faz ler! A leitura vem para ajudar a responder a um desejo de escrita.

Muitos professores fazem da "escrita"
dos seus alunos o objecto que os leva
à aprendizagem da leitura
Quando falamos de ensino da leitura, o objectivo do ensino [o seu objecto] é a escrita. A leitura é o meio de chegar à escrita. Ensina-se a leitura pela escrita. Muitos professores, aliás, fazem da "escrita" dos seus alunos o objecto que os leva à aprendizagem da leitura 
[VER VÍDEO].

«De facto – diz Roland Barthes – o grande problema é fazer do leitor um escritor. No dia em que se chegue a fazer do leitor um escritor virtual ou potencial, todos os problemas da legibilidade desaparecerão. Se se lê um texto aparentemente ilegível, no movimento da sua escrita compreendemo-lo muito bem. Evidentemente, há que fazer toda uma transformação, quase diria um educação». A educação que leva a aprender a «ler como um escritor», diria Francine Prose [2]. Faço, então, a distinção entre leitura e “leitura da escrita”. A “leitura da escrita” é uma forma particular de ler, uma leitura que não joga apenas com o conteúdo, mas com tudo o que escrever envolve, e que só quem escreve é capaz de fazer. Neste sentido, não é apenas a escrita que se enriquece com a leitura: a leitura precisa de trazer também a escrita consigo para se enriquecer. 

Se quero cultivar o gosto pela escrita junto dos meus alunos, só pelo "exercício da escrita" vou consegui-lo. Não é porque não lê que um aluno «cria uma enorme resistência à escrita»: é porque a escrita não foi percebida, em grande parte, como prioridade, a partir do momento mesmo da iniciação à leitura.

Se observarmos bem o que acontece nas escolas, não são só os alunos que têm resistência à escrita: muitos de nós também resistem à escrita! Quantas vezes falámos com os nossos pares, ou mesmo entre amigos, sobre o que escrevemos, da mesma forma que falamos de livros?
[3] Quantas vezes nos expomos frente aos nossos alunos com a nossa escrita? [4] Qual é a nossa reacção quando chega a nossa vez de escrever uma acta, um relatório?

Não vamos confundir a nossa reacção, face à escrita de uma acta, com a dos nossos alunos, face à escrita que os "convidamos" a escrever – dir-me-ão –. Não sei! Não sei se não será a escrita de "actas" que, a maior parte das vezes, os nossos alunos sentem escrever.
 
No que me toca, não me lembro de ter escrito alguma coisa porque quis, na escola. Mesmo quando era "convidado" a escrever sobre um tema à minha escolha, não era sobre o que queria que escrevia ! E isto porque, tal como na leitura, a liberdade na escrita não tem hora marcada num calendário ou agenda. Tal como o verbo ler, o verbo escrever não suporta o imperativo
[5]. Então, a questão que se coloca é saber como promover a escrita livre, aquela escrita que faz de facto escreventes, num espaço [a escola] onde a escrita é obrigatória. Como tentativa de resposta, Freinet propôs a instituição do Texto Livre.

Sobre este tema, LER: A propósito de Texto Livre >>>

________________________

[1] «Nos liceus, o ensino do português é um exercício burocrático, um inferno gramatical, uma ditadura que mata a capacidade de imaginar. Viajar pela língua deveria ser um exercício de liberdade, uma regata de alma e identidade, não uma colher diária de óleo de fígado de bacalhau. As regras devem ser conhecidas com o conhecimento dos livros e autores, com a história da literatura e a história da história. Mas infelizmente tudo isso vem depois, quando tantos já se perderam. Um equívoco» [LUÍS OSÓRIO - 11.09.2022].

[2] Francine Prose, Ler como um escritor, Casa das Letras, Lisboa, 2012. 

[3] Tive colegas, bem mais leitores do que eu, que devoram livros como não me lembro de ter devorado e que, no entanto, para além da escrita que os "ossos do ofício" obrigam, diziam não escrever. Falta, tantas vezes, o hábito do uso da escrita como instrumento que ajuda a pensar, por exemplo, a profissão. Falta aprender a escrever a profissão. Isto liga-se com enunciado de que, em muitos de nós, é a escrita que puxa a leitura: a leitura que apoia a escrita que fazemos da profissão.

[4] Há professores que se obrigam, com frequência, a escrever sobre o que propõem aos seus alunos, nas mesmas condições em que estes escrevem: na sala de aula, ao mesmo tempo que eles.

[5] "O verbo ler não suporta imperativo – escreve Daniel Pennac –. É uma aversão que compartilha com outros verbos: o verbo amar, o verbo sonhar...". in Como um Romance, Edições ASA, Porto, 1993: p. 11

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Da "Escola a Tempo Inteiro" ou de como o tempo todo das crianças foi tomado pela Escola *

Daniel Lousada

«A Escola a Tempo Inteiro é uma vergonha nacional - diz Carlos Neto, na entrevista que concedeu ao Jornal Público - As crianças não podem ser vítimas do trabalho dos pais. O tempo escolar tem que ser apreciado de uma forma nova».

O apoio à família podia ser diferente? Podia! Se ao tempo fosse decidido outro caminho, se os poderes públicos antes de decidirem, começassem pela pergunta: De que forma é que as famílias têm resolvido o problema da guarda dos seus filhos? Sem respostas à pergunta [porque não procurada], optou-se então pela decisão mais fácil, que não obriga a compromissos com as escolas e as famílias organizadas na resposta. E o resultado está à vista: o tempo da escola a invadir o tempo todo das crianças!

Será possível reverter o que Carlos Neto chama de "vergonha nacional"? Não sei! Com as redes informais de apoio, entretanto destruídas, e não estando nem aí quem estava na linha da frente destas redes, o trabalho a desenvolver seria mais do que imenso. Seria necessário montar de raiz [ou quase] toda uma estrutura de apoio, que as escolas, por si só, sem o apoio empenhado das famílias, nunca serão capazes de montar [e daqui o problema maior]: seria preciso convencer os pais, muitos dos quais confortáveis com a resposta que lhes é oferecidaa investir um pouco do seu tempo e energia na procura de respostas mais amigas dos seus filhos, levando-os a revisitar projectos de sucesso, entretanto abandonados; seria necessário convocar outros actores eventualmente disponíveis [associações de todo o tipo, ligadas à cultura, ao lazer, etc.], sensibilizando-os para a importância do seu contributo nesta área. E, muito importante, seria necessário, na presente conjuntura, que as autarquias dessem um sinal positivo nesse sentido, dispondo-se a apoiar alternativas credíveis, com recursos que poderiam ser, talvez, próximos dos disponibilizados às soluções existentes.** 

Como as famílias não estão, certamente, disponíveis para aceitar o que têm por coisa nenhuma, haverá, da parte das escolas, disponibilidade bastante para contribuir para uma alternativa credível? E da parte do poder autárquico, haverá vontade política para as acolher? Não sei. Os sinais que chegam da parte de algumas autarquias não são lá muito animadores! Indiferente às vozes que denunciam a insensatez desta "escola a tempo inteiro", vejo o município de Vila Nova de Gaia a insistir não só cavalgar mas a aprofundar o mesmo caminho, impondo agora às submissas Direcções de Agrupamentos Escolares, a flexibilização dos horários do 1º Ciclo, de maneira a acomodar as actividades de "complemento curricular", obrigando a remeter para o final do dia, áreas do currículo que aconselham a disponibilidade de cabeças mais frescas e descansadas. A "política" tem destas coisas: pessoas que nos habituamos a respeitar chegam a ministros, ou presidentes de câmara, e parecem perder a capacidade de pensar. 

___________________

Este texto teve uma versão anterior que foi inadvertidamente apagada. Como não foi conservada qualquer cópia, o que agora se apresenta foi escrito a partir das notas e da memória que ficou do texto anterior. A quem nos leu e queria reler a versão anterior apresentamos as nossas desculpas.

** O projecto piloto desenvolvido no conselho de Famalicão, que procura testar uma proposta mais amiga das crianças, merece a nossa atenção [VER AQUI >>>]

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Das reformas do Ensino e da organização do Currículo

in "Desenvolver competências ou ensinar saberes? 
A escola que prepara para a vida"
.  Pensa Editora LTD,
S. Paulo, 2013
Philippe Perrenoud

«O que mais ameaça as reforma do ensino, de modo geral, não são os adversários, mesmo os de má fé, e sim a sua fragilidade conceptual, o seu carácter pouco negociado e a sua participação» 

E a nossa pergunta é:
Será a algo assim que temos assistido nos últimos anos?

Texto de Philippe Perrenoud disponível em >>>

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Começar a aprender [a ler e a escrever] é difícil: Duas memórias para o futuro


Encontro no livro ERNESTINA de José Rentes de Carvalho, obra autobiográfica, a memória da sua iniciação à difícil arte das letras:
 
«As primeiras palavras que o meu avô me ensinou a soletrar foram, “Alfandega do Porto” que se liam em maiúsculas no topo de cada página dos cadernos em que ele anotava as ocorrências do serviço. Se eu soletrava a preceito ele incli­nava então o caderno para me ensinar as palavras impressas na margem em linha vertical: “Remessa de documentos para a sede”. Aí passou para o abecedário e como eu não mostrasse dificuldade em distinguir e decorar as letras, achou que podíamos avançar sem demora para o jornal. O seu dedo a seguir a linha, eu obediente a papaguear pala­vras de vago significado, esta minha aprendizagem da lei­tura resultou em que nunca me sentiria com gosto para ler histórias infantis.»
  
Já eu aproveitei o facto de ter nascido e vivido alguns anos em estações de comboios, ao tempo de caminhos-de-ferro. O meu avô e outros trabalhadores faziam funcionar uma es­trutura de grande responsabilidade, controlavam máquinas gigantescas, e centenas de pessoas apenas com telefones rudimentares.
 
Das folhas que me davam para eu estar sossegado, e que eu aproveitava para fazer como ele, aprendi ler no alto da fo­lha: “Parte Diária” – o resumo diário da vida da estação – e em baixo: “O Chefe da Estação”. Era difícil e esquisito, mas eu sabia ler aquilo, e copiava palavras afixadas na estação: saída, bilheteira, telégrafo, sala de espera... Mas mal sabia eu que na Escola aquilo de nada me serviria, porque só tinha [tínhamos] cadernos de linhas, ou de duas linhas, para co­piar letras que o professor nos ensinava a desenhar, en­chendo-as de tédio, horas ..., dias a fio, até doer a mão de tanto “escrever”, pelo esforço de não escrever nada!
 
Poder-se-á dizer que Alfândega do Porto ou Parte Diá­ria não será́ o mais apropriado para começar a Arte da Escrita. Mas foi! Sem "ciências da educação", estava ali o necessário para o sucesso nesta difícil aprendizagem: a utilidade, a fun­ção da escrita, estavam ali naquelas folhas, no uso que lhes dava. Mas sobretudo os afectos. A relação afectuosa com um avô... Que sorte a das crianças que tendo avós os acei­tam e aproveitam. João dos Santos, nos seus inúmeros escritos, fala-nos da sua importância nas aprendizagens. Sem afectos não há apren­dizagem, refere.
 
A Escola esquece-se desta componente vital, ao deparar-se com as crianças que se “portam mal”, que “nada querem fazer”, que “nunca estão concentradas”, “sempre desmoti­vadas”, porque o que lhes é proposto não lhes diz nada. E ignora que, a muitas delas, a vida não corre de feição. Que sabemos nós dessas vidas, que os mais novos não entendem, mas sentem? E ao sentirem, reagem, normalmente mal.
 
Continua a insistir-se na ideia de que o primeiro passo para a aprendizagem da língua escrita é a aprendizagem de uma técnica de codificação/descodificação, e que uma rápida análise dos manuais escolares parece confirmá-lo: o inte­resse mantém-se centrado na aprendizagem das letras, não da língua escrita em toda a sua complexidade, da qual a aprendizagem das letras faz parte [não o contrário]. Aqui não cabem nem "Alfândegas" nem "Comboios".
 
Para muitas crianças, a vida fora da escola é rude, e elas não conseguem desligar-se dela ao passar os portões da escola, o que as torna incapazes de cumprir com as suas exigências. Então, se não conseguem desligar-se, talvez parte da solu­ção esteja em deixar entrar na escola parte dos seus mundos com elas, dando-lhe a nossa a atenção. E a escrita é, talvez, uma das melhores portas de entrada de todos esses mundos que as suas vidas carregam: mundos de "estações de comboios e alfândegas" bem mais complicados do que os nossos.
 
E já agora, antes de exigirmos de uma criança o cumpri­mento de uma tarefa, talvez fosse útil perguntar-nos: gos­taria eu de fazer isto?