sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

Do sentido do projecto

"Quem é ensinado deve ensinar" *. Só assim, ensinando, tenho a certeza de que aprendi o que me foi ensinado. Daqui a importância de trazer aos nossos alunos este hábito de aprender, não só para saber, mas também para ensinar: passar aos outros o que aprendeu. Até porque o saber não partilhado é, a breve prazo, saber morto!

Os projectos educativos que se projectam na sala de aula — a partir dos quais deveriam nascer todos os outros, inclusive o projecto educativo da escola — deveriam assentar neste princípio. Não sendo assim, correm o risco de ser projectos sem sentido, imposição burocrática apenas, que pouco ou nada têm de educativo.

"Descobrir — e o projecto estrutura o processo de descoberta — é a única maneira activa de conhecer. Correlatamente, fazer com que se descubra é o único método de ensinar" **.

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*Gaston Bachelard, O materialismo racional, Lisboa, edições 70, 2001: p. 300.

** Gaston Bachelard, A espistemologia, Rio de Janeiro, 1977: p. 49.

segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Liberdade pedagógica: O bem-comum dos professores?*

Disponível em pdf >>>

A diferença fundamental de cultura profissional entre as escolas do 1º. ciclo e secundárias raramente é tida em conta, se é que o é, na maior parte dos comentá­rios so­bre as escolas e sobre os «professores», inclu­indo os de académicos de renome ou de observado­res bem infor­mados (gestores ou activistas educati­vos, jornalistas es­pecializados, etc.). Não é identifi­cada como um ele­mento relevante de análise. É como se a cultura profis­sional do ensino secundário fosse a única que perme­asse todo o sistema escolar, ou pelo menos a única legí­tima, identificável, referencial. No inconsciente social, o professor típico é o professor (mono)disciplinar de uma escola secundária. Este modelo esmaga todas as outras realidades, mesmo que sejam consistentes, antigas e contínuas. A unifi­cação dos sistemas escolares, outrora institucional e socialmente segregados, teria de facto as­segurado o domínio da cultura de elite do antigo liceu napoleó­nico sobre o conjunto do sistema, impedindo a difu­são de uma cultura democrática partilhada entre os diferentes níveis.

Este tropismo do ensino secundário está, portanto, ex­tremamente enraizado em todos aqueles que tive­ram uma formação universitária ou superior, ao ponto de já não se aperceberem deste hiato ou de partilha­rem in­conscientemente a sua filosofia elitista. A fraca capaci­dade pedagógica dos académicos para fazer entrar os estudantes no ensino superior está bem do­cumentada, tal como a taxa de insucesso que carac­teriza os primei­ros anos da universidade em muitas disciplinas. Além disso, quando se sai do ensino supe­rior, a memória dos professores da escola primária já desapareceu há muito tempo, ao passo que o número de professores que se encontram no ensino secundá­rio e universitário é infini­tamente maior e as suas fi­guras mais proeminentes. Uma das excepções, que confirma a regra, é a famosa homenagem de Albert Camus ao seu professor primário, no discurso de acei­tação do Prémio Nobel da Literatura.

Outra explicação para o tropismo implícito do ensino se­cundário pode residir no desejo de não criar uma dife­rença corporativista entre os diferentes corpos docen­tes. Desde que os professores do ensino primá­rio se tor­naram professores (com a Lei da Educação de 1989**) e, portanto, professores de pleno direito, a crença na uni­dade da profissão docente, como hori­zonte de pro­gresso, faz parte do credo unitário, se não mesmo uma realidade objectiva. Sublinhar hoje o fosso entre as duas culturas profissionais correria o risco [...] de ser visto como o instigador irresponsável de uma divisão interna. [...] Esta cultura tende a opor-se a uma visão «liberal» da profissão docente [...]. A noção de «liberdade pedagó­gica» pode assim ser posta em causa sob o pretexto de que é brandida, por razões erradas, por professores «in­dividualistas» ou, como uma bandeira, por forças hostis ao serviço pú­blico de educação e à sua democratização.

De facto, existem várias utilizações enganadoras desta noção de liberdade pedagógica. Esporadica­mente, há professores que, argumentando que têm a «sua» liber­dade pedagógica, acreditam que podem isolar-se no seu antiquado magistério, recusando co­laborar com os seus colegas, ou a prestar contas de escolhas ou decisões ar­bitrárias que fazem. Depois, há o caso sistemático dos movimentos conservadores que se opõem sistematica­mente às reformas educati­vas democráticas e que acre­ditam poder esconder-se atrás da «sua» liberdade peda­gógica para legitimar a sua rejeição de medidas que con­tradizem as suas ori­entações retrógradas. Por fim, há os promotores de escolas não contratuais que, a pretexto de respeita­rem a «liberdade educativa das famílias», exi­gem que as suas escolas recebam o mesmo financia­mento pú­blico que as escolas públicas.

Estas utilizações do conceito são claramente erradas. No caso da profissão de professor, a noção de liber­dade pe­dagógica não pode justificar uma prática «so­litária» e «discricionária» (uma «prática liberal» no sentido nega­tivo). Esta visão é o oposto da sua defini­ção fundadora. Pelo contrário, a liberdade pedagó­gica só assume o seu sentido profissional no espaço colectivo do trabalho do­cente (entre colegas e de forma organizada) e na delibe­ração argumentada, sob o controlo a posteriori (reforço a posteriori) de superiores hierárquicos, dotados de competências neste domínio. Reduzir a liberdade peda­gógica ao exercício egocêntrico do trabalho docente é reduzi-la a uma caricatura. É o tipo de atalho utilizado por aqueles que afirmam que o «anarquismo» reina numa escola fragmentada por causa de professores «in­disciplinados». Isto enfraquece perigosamente o signi­fi­cado político e histórico da liberdade pedagó­gica, que é simplesmente outro nome para a autono­mia profissio­nal dos professores face a guardiões ide­ológicos (dentro ou fora da escola) que são portado­res de valores anti-democráticos.

A liberdade pedagógica deve, portanto, ser defendida como um bem-comum a todos os professores, inde­pen­dentemente do seu estatuto, do seu nível de en­sino ou do contexto em que trabalham: uma liber­dade republi­cana e liberal (no sentido positivo, dando poder de ac­ção em troca de compromisso) que liga a autonomia profissional dos professores à sua respon­sabilidade indi­vidual e colectiva de defender a equi­dade democrática contra todas as imposições autori­tárias e elitistas.

Analisando a questão da partilha de responsabilida­des entre os diferentes níveis da pirâmide institucio­nal, o psicólogo canadiano David R. Olson observava em 2003: «A preocupação com a eficiência escolar, que é uma pre­ocupação recente, conduziu a um grave choque entre os diferentes níveis de responsa­bilidade, recaindo a res­ponsabilidade final sobre os mais vulneráveis, o aluno e o professor, enquanto a responsabilidade dos níveis mais elevados do sistema educativo desaparece. Assim, os governos, em vez de se responsabilizarem por não se­rem capazes de pro­porcionar profissionais devidamente formados ou de garantir a satisfação no trabalho, essen­cial para redu­zir a rotatividade e a demissão do pessoal (que são fundamentais para o sucesso de uma escola), tendem a centrar-se exclusivamente no desempenho dos alu­nos e a atribuir prémios e sanções apenas a pro­fesso­res e alunos. Aproximar as avaliações, concen­trando-se apenas na última linha do balanço, o sucesso dos alunos, em vez de julgar separadamente a qualidade das diferentes componentes do sistema, conduz ob­via­mente a uma redistribuição de responsabilidades da pior maneira possível...».

Para este psicólogo, esta forma de avaliar a eficácia do sistema, através de um indicador pouco adaptado à es­fera de responsabilidade dos detentores do poder, per­mite-lhes evitar que sejam avaliadas as suas pró­prias competências, as de gerir eficazmente a afecta­ção dos recursos para dirigir e organizar o sistema es­colar da me­lhor forma possível. Ao concentrarem-se nos resultados dos alunos e dos professores, deixam na sombra os indi­cadores que avaliam o funciona­mento operacional da instituição, que não são leva­dos ao «debate público». Trata-se, portanto, de uma outra armadilha para os pro­fessores, que são respon­sabilizados por resultados e ob­jectivos quantificados, sem poderem realmente intervir nas condições que tornam esses resultados possíveis, sob o pretexto de que isso seria da responsabilidade ex­clusiva dos tec­nocratas superiores e da hierarquia...

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Versão portuguesa de «La liberté pédagogique peut-elle être le bien commun des enseignants?» In Vers une nouvelle guerre scolaire (capítulo 13), Paris, Éditions La Découverte, 2019.
** À semelhança do que se passou por cá, os franceses criaram uma carreira única. E com ela deixaram cair a palavra «instituteur» com que designavam os que, entre nós, designávamos de professores primários, para passar a designá-los por «professeur d’école».

domingo, 15 de dezembro de 2024

Pode a neuro-educação relegitimar a pedagogia?*

No mundo actual, que se diz «horizontal» e resistente à verticalidade hierárquica, em nome da democracia e da igualdade, a negação da dimensão pedagógica na relação de ensino, já não é sustentável, a não ser que se retome a retórica dos defensores da ordem antiga ou que se proceda abertamente à selecção dos alunos em fileiras estanques e hierárquicas, que é a agenda fundamental dos partidos de direita. É por isso que uma das formas de reintegrar esta dimensão pedagógica sem aludir às noções legadas pela história da pedagogia é recorrer à «ciência» e aos lugares-comuns pedagógicos da neuro-educação, como se fossem uma descoberta recente.

Quais são os contributos e os conceitos-chave da neuro-educação? […] Os seus credos didácticos limitam-se, de facto, às primeiras aprendizagens, cuja actividade neuronal é acompanhada e cujas funções são decifradas: a linguagem oral, a leitura e a escrita, o cálculo e a aritmética são os principais alvos da prescrição «neuro». As aquisições mais complexas, características da escolaridade posterior, já não são objecto de uma prescrição pedagógica detalhada, porque permanecem misteriosas para a investigação neurocognitiva. É a constatação de Stanislas Dehaene: «Não compreendemos [...] como [as mudanças nos neurónios e no seu ambiente] implementam as aprendizagens mais elaboradas, baseadas na “linguagem do pensamento”, a combinação de conceitos específicos da espécie humana. [...] Não existe um modelo realmente satisfatório das redes neuronais subjacentes à aquisição da linguagem ou das regras matemáticas. Passar da sinapse às regras simbólicas que aprendemos nas aulas de matemática continua a ser, atualmente, um desafio». É por isso que, para o resto da escola do 1º. ciclo, a partir do 2º ou 3º ano, as prescrições «neuro» continuam a ser muito gerais e não vão ao cerne dos conteúdos e das tarefas escolares reais.

Em que consistem estas prescrições? Dizem respeito ao controlo da atenção, da memorização, da automatização, do raciocínio, do empenho activo e, paralelamente, à condução de comportamentos favoráveis à aprendizagem: o sono, a actividade física e artística do corpo. Todas estas áreas são, precisamente, as trabalhadas pela pedagogia desde as suas origens, até à «psicopedagogia», uma vez que se baseia nos resultados da psicologia do desenvolvimento desde o final do século XIX e da psicologia cognitiva no século passado. Para o comprovar, basta consultar a volumosa literatura de investigação sobre as formas de raciocínio (indutivo, dedutivo, abdutivo, etc.), sobre a docimologia, que estuda as diferentes formas de avaliação das aprendizagens (sumativa, formativa, portefólio, etc.), sobre as investigações relativas aos mecanismos de com-preensão, abstracção e conceptualização em geral, ou em didática nas diferentes disciplinas (ciências, matemática, francês, educação física, etc.). Alguns investigadores esforçaram-se por obter modelos úteis para a reflexão e a prática pedagógica.

A neuro-educação revisita assim, à sua maneira, aquilo a que poderíamos chamar, sem ironia, os lugares-comuns da pedagogia. É certamente preferível que assim seja, mesmo que se deseje que os trabalhos pioneiros e as tendências de investigação não sejam ignorados, dando a aparência de um grande zapping (a neuro-educação a substituir a referência à pedagogia) ou de uma redescoberta. Se esta reapropriação «neuro», feita às escondidas, permite aos professores do ensino secundário manterem-se aparentemente fiéis a uma certa postura «erudita» ou «científica» dominante, adoptando na realidade uma postura mediadora e não transmissora, será que este ardil assegura um ganho pedagógico para os alunos?

A procura de uma maior eficácia pedagógica sob a bandeira «neuro» não deve impedir-nos de nos interrogarmos também sobre o sentido e os valores que rodeiam o acto de ensinar (aquilo a que os filósofos da educação chamam a dimensão axiológica). Os movimentos educativos, as associações de especialistas, os sindicatos e todos os actores colectivos, têm um papel importante a desempenhar, para que os fundamentos políticos e éticos da profissão permaneçam vivos na prática quotidiana e não sejam submergidos por questões técnicas ou «burocráticas».

Qualquer mudança de comportamento profissional requer um quadro de referência intelectual e uma instância de legitimação. No século passado, o movimento da «Educação Nova» procurou um quadro de referência na psicologia e uma legitimação filosófico-política na educabilidade e na democracia. Hoje em dia, os professores que querem distanciar-se das posturas demasiado magistrais herdadas do passado e dos juízos essencialistas sobre os alunos (preconceitos sobre a «inteligência» e os «dons») podem encontrar na neuro-educação um quadro de referência e uma fonte de legitimação. [...] A pretensa cientificidade da neuro-educação pode ser suficiente para legitimar o desejo de mudança. No entanto, embora o quadro de referência seja útil e benéfico, a autoridade legitimadora é potencialmente mistificadora. Porque o ensino não é uma ciência: é um trabalho social e civilizacional, que deve ser desenvolvido e reflectido como tal, e que não pode escapar a posicionamentos filosóficos e políticos. A escolha é entre dois termos opostos: elitista ou democrático.
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*Philippe Champy, in capítulo 13,Vers une nouvelle guerre Scolare, Paris, Éditions La Découverte, 2019

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Compreender o que é o aluno para melhor o apoiar no seu «ofício»

Laurent Reynaud

Olhar para um aluno de uma forma diferente pode significar encontrá-lo num contexto diferente da sala de aula. Todos nos lembramos de um passeio escolar em que certos alunos nos pareceram «diferentes» do que pensávamos que eram. Observar aulas da mesma turma numa disciplina diferente, também pode mu­dar essa percepção. Uma mudança de contexto não significa apenas uma mudança de local, como uma vi­sita de estudo, mas também, talvez, uma mudança de relação. Por exemplo, colocar os alunos em posições de responsabilidade. CONTINUAR A LER >>>

segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

Inteligência artificial ou inteligência cooperativa na escola: Será preciso escolher?

Versão portuguesa de Intelligence artificielle ou intelligence coopérative à l’école: faut-il choisir?, publicado em Cahiers pédagogiques

Porque é que os alunos optam por pedir ajuda a uma IA, para o seu trabalho, na aula ou em casa, em vez de pedir a um colega? E o que é que eles ganham a mais em ajudar-se mutuamente? Estas são as reflexões de um professor de uma turma cooperativa sobre os méritos destas duas formas de ajuda, mas que se inclina mais para a cooperação entre alunos, a que ele chama de inteligência cooperativa. 

Na terça-feira, 17 de Novembro, Mohamed levanta-se para escrever o seu primeiro nome no quadro, que Raja acabou de desenhar. Entre as três colunas disponíveis – «Posso ajudar», «Preciso de ajuda», «Trabalho sozinho» – Mohamed não hesita e escreve o seu nome na terceira coluna. De volta ao seu lugar, abre o seu computador, ce­dido pela escola, tira uma folha de papel e começa a tra­balhar.

Este tempo, e este quadro de ajuda, foram concebidos pela nossa equipa para que os alunos se ajudem mutua­mente nos seus trabalhos escolares. Para nós, a coopera­ção não é apenas um fim em si, mas sobretudo um meio de aprendizagem. Como não se trata de a impor, dei­xamos aos alunos a possibilidade de trabalharem sozi­nhos, se assim o desejarem. No entanto, há uma observa­ção que nos preocupa. Este ano, há mais nomes na ter­ceira coluna. Porquê?

Quando o meu olhar caiu no ecrã de Mohamed, descobri uma plataforma, já familiar, de inteligência artificial.

– «Por que estás a usar isso?

– Senhor, estou a trabalhar!»

Peço-lhe que volte a explicar a lição de matemática sobre funções e que me crie exercícios práticos.

– «E porque não perguntas ao Danny que se inscreveu na coluna "Posso ajudar"?

– Ah, não tinha pensado nisso!»

A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL ESTÁ PARA FICAR 

A inteligência artificial chegou à escola, isso é um facto. Por vezes, através de actividades preparadas pelos profes­sores. Mais frequentemente, através da utilização espon­tânea pelos alunos. A Jenna, por exemplo, consulta-a re­gularmente no corredor para lhe fazer perguntas, que a ajudem a rever a matéria antes da avaliação; a Mathilda pede-lhe que releia um texto que escreveu em casa para verificar se é compreensível; o Sami dá-lhe os trabalhos de casa para fazer, «para comparar com os que faço sozi­nho e autocorrigir-me», diz ele com um sorriso.

A I.A. é vista como útil pelos alunos. No entanto, em mui­tas das suas utilizações, podiam muito bem ter recorrido aos seus colegas de turma. Talvez pudessem ter matado dois coelhos com uma cajadada só: ter sucesso nas tare­fas es­colares e aprender competências de inteligência co­opera­tiva. Então porque é que Maomé não preferiu ir ter com o Danny para rever a sua matemática? Porque é que nem sequer pensou nisso? Por outras palavras, será que a uti­lização da inteligência artificial está a substituir, gra­dual­mente, a utilização da inteligência cooperativa, inclu­indo a comunicação entre humanos? Como é que se pode con­ciliar as duas coisas na escola? O que é preciso para fazê-lo?

ENTRE O FASCÍNIO CEGO E A PREOCUPAÇÃO ESTÉRIL

Flores artificiais, carne artificial e neve artificial são todos substitutos que nos provocam frequentemente sentimen­tos de rejeição. Quando se trata de inteligência, a reacção emocional não é tão clara. Quer te sintas irresistivelmente atraído ou sistematicamente amedrontado, basta uma simples tentativa de responder a uma pergunta subme­tida à IA para sentires um certo fascínio: «É espantoso!» Por vezes, este espanto desvanece-se para aqueles que se dão ao trabalho de verificar as informações fornecidas.

No domínio da educação, a I.A. é, por vezes, motivo de pre­ocupação, por várias razões: o risco de alienação, a perda de criatividade, uma relação de consumo que não incen­tiva o esforço de investigação, o futuro da profissão, a fo­calização na transmissão, etc. Como acontece fre­quente­mente, a preocupação rapidamente dá lugar à pro­ibição ou à resignação. É o caso, por exemplo, dos traba­lhos de casa, em que alguns colegas procuram vestígios de uma possível utilização da I.A. para punir, enquanto ou­tros op­tam pela solução mais simples: já não dão TPC.

E aqui estamos nós, a caminhar numa linha ténue entre o fascínio cego e a preocupação estéril. Como podemos evi­tar cair para um lado ou para o outro e mantermo-nos no caminho da educação? No que diz respeito aos trabalhos de casa, esta nova tensão acaba por nos convidar a clari­ficar o que se espera dos alunos neste tipo de trabalho.

Muitas vezes, os trabalhos pessoais e os trabalhos de casa são utilizados como sinónimos, imaginando um aluno em casa, sentado sozinho à mesa, a fazê-los. No entanto, os trabalhos de casa raramente são feitos individualmente. Quando confrontados com dificuldades, os alunos trocam informações activamente, enviando mensagens de voz ou de texto, em várias redes sociais.

Assim sendo, estes trabalhos poderiam ser uma oportuni­dade para mobilizar a inteligência cooperativa entre pa­res. No entanto, quando pergunto à Mathilda porque é que usa a I.A. para fazer os trabalhos de casa, em vez de pedir ajuda a um colega, a resposta demora um pouco a chegar. Talvez nunca se tenha questionado, o que é razo­ável, dado que esta opção se tornou automática. E, final­mente, decide: «Não sei bem. Mas é claro que é mais rá­pido, não tens de esperar pela resposta».

DA RESPOSTA IMEDIATA AO TEMPO DE REFLEXÃO

O interesse da I.A. para os estudantes é, portanto, a rapi­dez. A resposta é dada de forma instantânea, por isso evita-se perdas de tempo. É verdade que é rápida, mas como competir com ela? E será que as escolas podem, e devem, competir? Esta rivalidade desvanece-se a partir do mo­mento em que o trabalho na escola consiste não apenas em encontrar as respostas certas, mas sim em formular perguntas.

De facto, acontece frequentemente que, nas aulas, res­pondemos a perguntas que os alunos não fazem a si pró­prios. Se nos concentrarmos mais em levantar questões e, portanto, em fazer pensar, em vez de nos limitarmos a dar respostas, a inteligência cooperativa torna-se rapida­mente insubstituível. Nada é mais desestabilizador e questionador do que esfregar as tuas certezas contra as dos outros.

No âmbito desta educação para a incerteza, Sophie Rous­seau-Grousson e Gurvan Crombez partilham uma aborda­gem da profissão no seu artigo, no site Café pédagogique: «O professor incentiva os alunos a discordar no seio de um grupo, permitindo-lhes, no final, escolher várias opções, possibilidades ou respostas para a situação-problema que lhes é apresentada». Assim, o objectivo dos alunos não é exclusivamente dar a resposta certa, o que a I.A. pode fa­zer, mas, pelo contrário, exprimir uma opinião autêntica para cultivar a incerteza. Na aula, organizo o trabalho em grupo de forma a ajudar a utilizar e a desenvolver esta in­teligên­cia cooperativa de comparação de pontos de vista.

Aprender a abrandar para pensar em vez de automatizar: este é um objectivo de aprendizagem que, uma vez clari­fi­cado, pode sem dúvida tornar a I.A. útil. Por exemplo, pode pedir-se aos alunos que investiguem uma resposta gerada pela I.A., para que possam procurar elementos fi­áveis, er­ros ou aproximações, comparando-a com uma in­vestiga­ção mais avançada. Também é possível discutir com os alunos a utilização da I.A. na sociedade, para que estejam conscientes das questões relacionadas com esta utiliza­ção automatizada e dos dados utilizados. Estas duas acti­vidades levam tempo, mas também ajudam a passar do fascínio ao distanciamento crítico, da utilização ingé­nua à escolha informada.

TRANQUILIZAR SEM ENCARCERAR 

É claro que se pode argumentar que o ganho de tempo não é a única vantagem para os alunos. A I.A. também pode tranquilizar aqueles que têm medo de cometer er­ros. So­bre este ponto, uma conversa com os alunos mos­tra rapi­damente que eles não se deixam enganar. A maio­ria está consciente de que as respostas nem sempre são muito fi­áveis, mas, para alguns, serão sempre melhores do que as respostas que conseguem encontrar por si.

Perante esta auto-imagem desvalorizada, que é o travão de muitos progressos, a I.A. permanece impotente. Tam­bém aqui, a inteligência cooperativa continua a ser muito importante. Por exemplo, na tabela de ajuda elaborada por Raja, os alunos passam, por vezes, da coluna «Preciso de ajuda» para a coluna «Posso ajudar». Este sentimento de realização pessoal é possível graças à relação prévia entre dois alunos que se ajudaram mutuamente. Se isto contribui para que o aluno que ajuda se sinta valorizado, também pode tranquilizar o aluno que está a ser ajudado e incutir-lhe um sentimento de progresso. Tudo isto é pos­sível, desde que os alunos sejam formados nesta relação de ajuda, porque ela é tudo menos inata e espontânea.

Tendo a relativizar um pouco este defeito da I.A., desde que Sylvain Connac me mencionou o efeito Tinder. Se este nome colocado neste contexto te faz sorrir, no entanto tem o mérito de falar por si. Inspirado por um aluno que prefere esta aplicação de encontros a uma discussão real, porque reduz o risco de «ficar a ver navios», este efeito esclarece um dos preconceitos de uma relação de ajuda na sala de aula. Por exemplo, um aluno preferiria sem dú­vida recorrer à I.A. se estivesse bloqueado no seu traba­lho, pois isso impediria que expusesse os seus defeitos aos ou­tros e se sentisse envergonhado.

A I.A. permitiria, portanto, eliminar os bloqueios dos alu­nos, sem que estes tivessem de se expor aos outros. Mas é precisamente aqui que podemos encontrar um desafio pedagógico na luta contra este isolamento. Assim, é es­sencial trabalhar na construção de um espaço «não ame­açador» na sala de aula. Um espaço onde todos se sintam progressivamente no direito de exprimir as suas dificulda­des. Isto será conseguido através de regras construídas em conjunto, mas também através da organização de in­teracções regulares que, gradualmente, possam descons­truir julgamentos, ou a percepção de julgamentos por parte dos outros.

Mais simplesmente, recordo uma observação de ajuda mútua no liceu de Amiens, durante uma apresenta­ção da nossa equipa Feydercoop[1] sobre a relação entre as práti­cas cooperativas e o abandono escolar. Um aluno sentou-se ao lado de Paul para o ajudar com o seu inglês. Este aluno contou-me mais tarde, numa entrevista: «Sa­be, fui falar com ele, mas percebi que ele sabia fazer aquilo muito bem. Com o Paul é muitas vezes assim, vou lá mais para que ele não desista. Eu sou um pouco um im­pulsionador da sua confiança». Um estímulo à confiança, é o que o Danny poderia ter sido para o Mohammed, para além de o ajudar com o trabalho de matemática.

PREPARA O AMANHÃ, OU INVENTA-O

A inteligência cooperativa parece, portanto, útil e insubs­tituível na sala de aula. Mas ainda precisa de ser posta em prática, em particular através da implementação de práti­cas cooperativas. Quer isto dizer que a I.A. não tem lugar nas escolas? Sem dúvida que não.

Além disso, há quem apresente apressadamente o argu­mento utilitarista: «A I.A. estará, amanhã, em todo o lado, por isso temos de nos preparar para ela na escola». A lei­tura de A Crise da Cultura, de Hannah Arendt, ajuda a esbater esta abordagem: «Cada nova geração tem de redes­cobrir laboriosamente a actividade de pensar. Não se trata de refazer o fio quebrado da tradição, nem de inventar um substituto ultramoderno capaz de superar o hiato entre o passado e o futuro, mas de saber praticar o pensamento para entrar neste hiato».

Precisamente, cabe aos alunos, aos futuros cidadãos, en­trar neste hiato e inventar o amanhã. Em que medida po­dem as crianças de hoje imaginar e inventar o mundo de amanhã, se a geração que as precede está a incutir a sua própria visão do futuro?

O amanhã não é apenas um horizonte fixo predetermi­nado por um avanço tecnológico, é também uma constru­ção do que queremos que ele seja colectivamente. Assim, o papel da escola não é preparar o amanhã, mas dar aos alunos os meios para escolherem e imaginarem o seu fu­turo. Mas é preciso deixar espaço para que o colectivo se dedique a imaginar o que poderá ser o futuro desejável. Para isso, a escola continua a ser um lugar privilegiado, porque é aí que todas as diferenças se encontram e tra­balham em conjunto. Mas é preciso ainda organizar as condições da inteligência cooperativa, e isso não se faz so­zinho perante um software, mesmo que seja «inteli­gente».


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[1] https://feydercoop.wordpress.com