sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Das reformas do Ensino e da organização do Currículo

in "Desenvolver competências ou ensinar saberes? 
A escola que prepara para a vida"
.  Pensa Editora LTD,
S. Paulo, 2013
Philippe Perrenoud

«O que mais ameaça as reforma do ensino, de modo geral, não são os adversários, mesmo os de má fé, e sim a sua fragilidade conceptual, o seu carácter pouco negociado e a sua participação» 

E a nossa pergunta é:
Será a algo assim que temos assistido nos últimos anos?

Texto de Philippe Perrenoud disponível em >>>

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Começar a aprender [a ler e a escrever] é difícil: Duas memórias para o futuro


Encontro no livro ERNESTINA de José Rentes de Carvalho, obra autobiográfica, a memória da sua iniciação à difícil arte das letras:
 
«As primeiras palavras que o meu avô me ensinou a soletrar foram, “Alfandega do Porto” que se liam em maiúsculas no topo de cada página dos cadernos em que ele anotava as ocorrências do serviço. Se eu soletrava a preceito ele incli­nava então o caderno para me ensinar as palavras impressas na margem em linha vertical: “Remessa de documentos para a sede”. Aí passou para o abecedário e como eu não mostrasse dificuldade em distinguir e decorar as letras, achou que podíamos avançar sem demora para o jornal. O seu dedo a seguir a linha, eu obediente a papaguear pala­vras de vago significado, esta minha aprendizagem da lei­tura resultou em que nunca me sentiria com gosto para ler histórias infantis.»
  
Já eu aproveitei o facto de ter nascido e vivido alguns anos em estações de comboios, ao tempo de caminhos-de-ferro. O meu avô e outros trabalhadores faziam funcionar uma es­trutura de grande responsabilidade, controlavam máquinas gigantescas, e centenas de pessoas apenas com telefones rudimentares.
 
Das folhas que me davam para eu estar sossegado, e que eu aproveitava para fazer como ele, aprendi ler no alto da fo­lha: “Parte Diária” – o resumo diário da vida da estação – e em baixo: “O Chefe da Estação”. Era difícil e esquisito, mas eu sabia ler aquilo, e copiava palavras afixadas na estação: saída, bilheteira, telégrafo, sala de espera... Mas mal sabia eu que na Escola aquilo de nada me serviria, porque só tinha [tínhamos] cadernos de linhas, ou de duas linhas, para co­piar letras que o professor nos ensinava a desenhar, en­chendo-as de tédio, horas ..., dias a fio, até doer a mão de tanto “escrever”, pelo esforço de não escrever nada!
 
Poder-se-á dizer que Alfândega do Porto ou Parte Diá­ria não será́ o mais apropriado para começar a Arte da Escrita. Mas foi! Sem "ciências da educação", estava ali o necessário para o sucesso nesta difícil aprendizagem: a utilidade, a fun­ção da escrita, estavam ali naquelas folhas, no uso que lhes dava. Mas sobretudo os afectos. A relação afectuosa com um avô... Que sorte a das crianças que tendo avós os acei­tam e aproveitam. João dos Santos, nos seus inúmeros escritos, fala-nos da sua importância nas aprendizagens. Sem afectos não há apren­dizagem, refere.
 
A Escola esquece-se desta componente vital, ao deparar-se com as crianças que se “portam mal”, que “nada querem fazer”, que “nunca estão concentradas”, “sempre desmoti­vadas”, porque o que lhes é proposto não lhes diz nada. E ignora que, a muitas delas, a vida não corre de feição. Que sabemos nós dessas vidas, que os mais novos não entendem, mas sentem? E ao sentirem, reagem, normalmente mal.
 
Continua a insistir-se na ideia de que o primeiro passo para a aprendizagem da língua escrita é a aprendizagem de uma técnica de codificação/descodificação, e que uma rápida análise dos manuais escolares parece confirmá-lo: o inte­resse mantém-se centrado na aprendizagem das letras, não da língua escrita em toda a sua complexidade, da qual a aprendizagem das letras faz parte [não o contrário]. Aqui não cabem nem "Alfândegas" nem "Comboios".
 
Para muitas crianças, a vida fora da escola é rude, e elas não conseguem desligar-se dela ao passar os portões da escola, o que as torna incapazes de cumprir com as suas exigências. Então, se não conseguem desligar-se, talvez parte da solu­ção esteja em deixar entrar na escola parte dos seus mundos com elas, dando-lhe a nossa a atenção. E a escrita é, talvez, uma das melhores portas de entrada de todos esses mundos que as suas vidas carregam: mundos de "estações de comboios e alfândegas" bem mais complicados do que os nossos.
 
E já agora, antes de exigirmos de uma criança o cumpri­mento de uma tarefa, talvez fosse útil perguntar-nos: gos­taria eu de fazer isto?

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Sobre a "Pedagogia Espectáculo"

Philippe Meirieu


Versão condensada em português de Daniel Lousada 
[DISPONÍVEL TAMBÉM EM PDF >>>]

No domínio da educação, há certas tomadas de posição simplesmente irritantes, em obras de divulgação pedagógica como no livro On achève bien les écolier, de Peter Gumbel [autor britânico radicado em França], um panfleto que recupera teses bem conhecidas desde há décadas, sobre os efeitos prejudiciais da competição desenfreada entre alunos, o carácter inutilmente stressante das avaliações sistemáticas, o cansaço provocado pelo excesso de exercícios repetitivos e de trabalhos de casa, a ineficácia de programas idiotamente enciclopédicos, etc.

Quando apareceu, os grandes meios de comunicação social logo se apressaram a falar do livro como se do acontecimento do século se tratasse (...).

Entendamo-nos: estou, em grande parte, de acordo com algumas das constatações de Peter Gumbel. Até poderia fazê-las minhas numa conversa de amigos e não apenas como provocação. Mas não as teria apresentado de maneira tão caricatural, sem tomar algumas precauções, sem evocar, pelo menos, os argumentos dos meus adversários. Quanto mais não fosse porque no âmbito educativo, mais do que em qualquer outro, creio estarmos obrigados a aplicar o “princípio da tolerância”, enunciado por Paul Ricoeur: “A tolerância não é uma concessão que fazemos ao outro; é reconhecer o princípio de que uma parte da realidade me escapa”.

Não compreendo como é que declarações tão radicais, tão pouco argumentadas histórica e filosoficamente, que apresentam, como novidades extraordinárias, banalidades que se vêm arrastando desde há um século, na bibliografia pedagógica, podem receber tão ampla aprovação. Até porque, se queremos verdadeiramente animar a polémica, mais vale referir certos textos dos inícios da Educação Nova, como o famoso epigrama de Adolfo Ferrière.*

A questão é que Peter Gumbel não disse nada de diferente deste poema, só que o disse com menos talento. O que não impediu os comentadores de serviço, ignorantes da história da pedagogia, de o encontrarem “refrescante” (...), decisivo para o futuro da educação”. Enaltece-se, assim, um pensamento que tem sido relativizado, porque objecto de numerosas e diversas interpretações, sobre o qual os pedagogos se interrogam: (...) Que quer dizer “a actividade da criança deve servir para alguma coisa”? Estamos a falar de uso imediato, de uso futuro, de uso pessoal e cultural? Pode-se opor tão facilmente as mãos e o cérebro? Não haverá um ir e vir permanente entre ambos? O silêncio e a memória serão verdadeiramente inúteis? O aluno pode investigar ciência sem que alguém o guie na sua investigação? Poderá compreender o mundo graças a modelos científicos, apresentados pelo adulto de forma magistral e, ainda assim, aceder à alegria de compreender? Como é possível que um século depois de Ferrière, se passem por alto todas estas perguntas? E o que é mais estranho, como é possível que os defensores oficiais da anti-pedagogia, grandes intelectuais ou pequenos fazedores de opinião das redes sociais, percam o controlo quando alguém apresenta, comedidamente e com infinita prudência, algumas teses sobre a necessidade de diferenciar a pedagogia (...), e fiquem misteriosamente silenciosos perante panfletos pouco escrupulosos na sua enunciação, apesar de terem muito mais impacto na opinião pública do que os escritos pedagógicos que estigmatizam? Como explicar que os tenham tratado – como me trataram tantas vezes – de “impostor” ou de “coveiro” da cultura?

Há algo particularmente irritante, quando vemos as intervenções das estrelas da “pedagogia espectáculo”, a navegar, sem correr o menor risco, nas águas dos lugares comuns mais consensuais. (...) Veja-se, por exemplo, Ken Robinson na sua conferência TED mais célebre. Com muita habilidade e humor, explica que todas as crianças são espontâneas, criadoras e que o sistema escolar, ao submetê-las a exercícios absurdos e estandardizados, mata nelas toda a criatividade. Convoca-nos a “respeitar mais a infância”, a “cultivar cuidadosamente a sua imaginação”, e exorta-nos a inventar uma educação “que assente na busca incessante da capacidade criadora de cada indivíduo”.

Quem poderia opor-se a tais intenções gerais tão generosas? Ken Robinson brinca no registo dos lugares comuns mais sedutores e, com isso, todos os pais podem acreditar que os seus “rebentos” são espontaneamente génios e que, se não conseguirem sê-lo na escola, é porque esta os arruinou profundamente. Quanto aos professores que descobrem que os seus alunos não são nada criativos (...), podem contentar-se em condenar o "sistema" e apelar à "revolução", para não terem de enfrentar a mínima "mudança" concreta nas suas práticas.

A verdade é que a "natureza criativa" da criança não foi atestada nem repartida de forma equitativa no campo social. Por outro lado, não é assim tão certo que, o que tomamos por uma regressão do imaginário, à medida que a criança cresce, não seja, afinal, a descoberta do princípio da realidade que, durante algum tempo, restringe o campo do possível, mas que também dá acesso ao conhecimento que leva a um verdadeiro domínio do mundo: Como sabemos, o pensamento científico é simultaneamente abertura e renúncia; implica formular hipóteses e testá-las, a fim de identificar quais são os verdadeiros instrumentos de inteligibilidade do mundo, "saberes estabilizados", que permitem aos seres humanos partilhar conhecimentos comuns.

Além disso, a exaltação da “criança criativa”, perante a qual os adultos só podem maravilhar-se, o uso constante da metáfora hortícola, que apresenta a criança como uma planta que tem em si todo o potencial para florescer naturalmente, sob o nosso olhar extasiado, ignora as terríveis desigualdades sociais resultantes, em particular, da educação familiar.

É por isso que não podemos contentar-nos – mesmo que o façamos com a maior habilidade – em pregar a abstenção educativa para "deixar a criatividade desenvolver-se livremente". Mais ainda: não podemos insinuar que a criatividade é um dom, que apenas necessita que não se lhes imponham restrições escolares. A criatividade é algo que também se “ensina”; requer uma pesquisa permanente do professor para encontrar situações estimulantes (...), uma atitude positiva e exigente de expectativas em relação a cada aluno. Podemos certamente assumir que Ken Robinson sabe tudo isto... E no entanto, dando a entender o contrário, enche o seu público de ilusões, ao mesmo tempo que anestesia, com o seu optimismo absurdo, qualquer verdadeira inventividade pedagógica.

Daqui a minha irritação: na circulação de lugares comuns pedagógicos que, por trás de uma unanimidade de fachada, podem levar ao desenvolvimento de teorias e práticas contraditórias que, na realidade, perseguem objectivos opostos. Ora bem, os nossos filhos merecem muito melhor. Eles merecem, ao menos, um pouco de lucidez. Eles merecem o nosso esforço em descobrir as verdadeiras questões pedagógicas e políticas em jogo na nossa educação. Merecem adultos com os pés no chão, que não reneguem nada, mas que também não se deixem enganar.

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* In Pédagogie des lieux communs aux concepts clés, ESF Éditeur, Paris: 2016

sábado, 27 de agosto de 2022

Do fracasso que leva à falta de motivação

Philippe Meirieu
Versão portuguesa de Daniel Lousada, a partir do original "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés", Paris, ESF Éditeur, 2013

Desde há muito que manifesto a irritação que me desperta a frase: “Esse aluno não atinge os objectivos porque não está motivado". Então costumo inverter esta afirmação com a pergunta: E se, pelo contrário, não estiver motivado porque não temos sido capazes de ajudá-lo a alcançar os objectivos?

Não há nada mais desmotivador do que o fracasso, sobretudo quando se repete e, progressivamente, nos resignamos a ele, até considerá-lo uma fatalidade da qual não é possível fugir.

Como pode alguém sentir-se motivado quando parece que o sucesso está fora do seu alcance, quando não consegue vislumbrar o mínimo progresso, apoiar-se numa aquisição bem-sucedida, para projectar-se no futuro e imaginar-se diferente? É assim que demasiadas crianças e adolescentes se sentem dia a dia: a sensação de um horizonte invisível, de estarem proibidos não só do sucesso escolar, mas também de todas as formas de sucesso social valorizadas. É desta forma que se esgotam a repetir – porque lhes exigem que o façam – as mesmas tentativas improdutivas, para finalmente constatarem, com maior ou menor resignação, raiva até, que estão definitivamente condenados ao fracasso.

Ao fim de algum tempo [muito ou pouco, conforme os casos] a acumular fracassos, o adolescente, para fugir do peso da derrota, acaba por organizar o seu próprio fracasso, porque é a única coisa em que realmente pode ter sucesso. Com efeito, o fracasso gera, com muita frequência, o medo de correr o risco de fracassar: há uma espécie de entorpecimento da motivação, algo desprovido das suas raízes e incapaz de dar ao jovem a possibilidade de se projectar no futuro. Por vezes desenvolve uma vontade deliberada de falhar, muitas vezes acompanhada de formas de violência e autodestruição que lhe permitem dizer a si próprio: “Pelo menos quem fez isto fui eu!”. E este processa leva por vezes a esta última contradição: dar-se à morte [escolar, profissional, afectiva, psicológica, física] para tentar recuperar o controlo da própria vida.

Esta obstinação em fabricar o próprio fracasso está associada, sobre tudo, à dificuldade em criar vínculos com os demais e, em particular, com os adultos. Com frequência, alguns jovens preferem rejeitar qualquer apoio exterior, por mínimo que seja, para se instalarem numa omnipotência suicida: à ajuda do outro, preferem fracassar sozinhos.

É evidente que esta dificuldade em criar vínculos pode ter as suas raízes numa história pessoal particularmente acidentada, mas como é possível não ver que ela está também articulada, em grande medida, com situações escolares, no mínimo, inadequadas? Como não reconhecer que o desmoronamento  das relações entre jovens e adultos, numa escola onde o trabalho colectivo já não é elemento aglutinador de um compromisso comum, mantém e até promove esta dificuldade em criar vínculos?