sábado, 5 de dezembro de 2020

A banalização da identidade profissional dos professores

António Nunes
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Desejo que revindiquemos, dos Jardins de Infância ao Ensino Superior, a possibilidade de pôr em prática dispositivos pedagógicos inspirados nas pedagogias cooperativas e institucionais, que permitam a cada um e cada uma “ter o seu lugar” num coletivo, quer dizer, não ocupar todo o espaço mas também não ser excluído, sub-repticiamente ou brutalmente, dele. É por isso que me parece essencial reafirmar a Escola como uma “instituição” que incarna os valores da República, e não um “serviço” encarregado de satisfazer, individualmente, os pedidos dos utilizadores.”[1]


1.   O Expresso do dia 24 de novembro do corrente ano, num artigo intitulado “Gulbenkian ajuda alunos ca­renciados com mentorias e aulas extra”, dá-nos conta de um programa intitulado de GAP – Gulbenkian Aprendizagem, que pretende apoiar “pelo menos 5.000 alunos dos ensinos básicos e secundário", de forma que estes possam recuperar aprendizagens li­gadas às disciplinas de Português, Inglês e Matemá­tica e, ao mesmo tempo, que possam “desenvolver competências importantes para o estudo autó­nomo”.

Para isso irá selecionar alunos pertencentes a grupos socioeconómicos mais desfavorecidos, num universo de cerca de 120 escolas do país. Estas mentorias po­derão ser realizadas de formas diferentes: apoio in­dividual, ou em pequenos grupos ou mesmo dentro da sala de aula.

Sabemos também que já existe nas nossas escolas apoios realizados por jovens mentores - pessoas com formação superior - que se oferecem, segundo o ar­tigo, e passo a citar, a “dedicar o seu tempo a tentar fazer a diferença numa escola”. Estes jovens perten­cem à “Teach For Portugal [2]” que tem como objectivo  “não deixar nenhuma criança para trás durante o seu percurso escolar, desenvolvendo o seu potencial ao máximo, desde os resultados académicos até à ges­tão emocional.” Para isso têm um “Mentor na sala de aula e na escola (que) permite dar mais aten­ção aos alunos, criar coesão e resolver situações re­petitivas de abandono, desistência, desmotivação e conflito [3].”

Dito isto, e pensando serem estas iniciativas, quer por parte da Gulbenkian, quer por parte deste grupo de jovens, de saudar, gostaria de fazer algumas con­siderações que entendo serem pertinentes, quer à escola, quer, principalmente, aos professores e à sua Identidade Profissional. É que, os professores devem ter, verdadeiramente, um compromisso com a edu­cação e com os seus alunos e, desta forma, assumir a fragilidade do ato pedagógico, das permanentes con­tradições que este lhes impõe e da complexidade que as relações humanas muitas das vezes apresentam.    

2.    Partindo de um conjunto de preocupações manifes­tadas por alguns intelectuais, na passagem do seculo XIX até cerca dos anos 30 do século XX, podemos ver, com relativa facilidade e evidência, uma panóplia de preocupações relativamente à escola e, principal­mente, ao papel do professor na sala de aula e dos saberes necessários à profissão.

1866. "Para educar mestres não basta expor prin­cípios de ciência, é preciso ensinar a ensinar, en­sinar pedagogia" (João de Andrade Corvo)

1887. “Se a profissão do magistério é uma profis­são científica como qualquer outra, o professor precisa de um período de aprendizagem, que o habilite a entrar capaz e dignamente no exercício das suas funções" (Ferreira Deusdado).

1915. “Um recrutamento de professores só pode ser feito por quem conheça perfeitamente as ne­cessidades do ensino. O recrutamento de técnicos só pode ser conscientemente feito pelos seus iguais" (Adolfo Lima).

1930. “O Estado organiza o plano geral dos estu­dos, formula os objectivos a realizar mas aos pro­fessores e só a eles compete a organização dos programas dos cursos, isto é, a selecção das ma­térias, a concretização dos exemplos e a escolha dos métodos e processos adequados à realização dos fins que se tem em vista" (Eusébio Tamag­nini).

1932. "Os que frequentam esta Escola Normal sa­bem muito bem que ela é um instituto de educa­ção profissional: vem aqui aprender-se a ser edu­cador, como numa faculdade de medicina se aprende a ser médico" (Alberto Pimentel Filho)

Encontramos nestes pequenos excertos um conjunto de considerações cuja natureza nos dirige, de forma nítida, para um leque de preocupações que podere­mos centrar naquilo a que chamamos de legitimação da profissão de professor. Neles, deparamo-nos com uma combinação de imagens construídas à volta de três eixos: a profissão gerida pelos “seus iguais”, um poder próprio e intrínseco da profissão e, fundamen­talmente, um saber particular, exclusivo e clara­mente identitário destes profissionais.

3.    A docência, ou dizendo de uma outra forma, o ato de ensinar, impõe uma determinada prática social, cul­tural, moral, ética e política, isto é, torna o professor num “carrejão e guardião” da missão que a sociedade lhe confiou, esforçando-se por conseguir, através da pedagogia, romper as barreiras e fronteiras que mui­tos alunos carregam consigo, impostas quer pela fa­mília, quer pela sociedade ou, noutros casos, fazendo mesmo parte do seu próprio desenvolvimento ou do seu património genético.

4.   Para ensinar bem não basta ter domínios, por muito bons que sejam, de um determinado tipo de conhe­cimento, é determinante ter deste uma compreen­são da sua raiz histórica, cultural, científica e social. O conhecimento, em cada profissão, é guiado por um conjunto de valores que lhe dão, naturalmente, sen­tido e objetivos, servindo, desta forma, todos aqueles “a quem se presta um serviço e às metas sociais mais abrangentes que se pretendem alcançar com esse serviço.” (Smylie, Bay, e Tozer, 1999).

5.   Para se tornar um profissional de educação, o profes­sor depende, pois, de um articulado de característi­cas, que passam, por exemplo, por uma boa forma­ção pessoal, por valores morais sólidos e, muito, por uma boa formação profissional, que o ajude a lidar com a surpresa e o inesperado, na certeza de que o ato pedagógico é único e irrepetível, sendo a peda­gogia “por natureza, um trabalho sobre situações particulares” (Meirieu, 2002). Desta forma, recor­rendo a Nóvoa (in Santos, L.L., 2013) “só a pedagogia – uma pedagogia conduzida pelos professores – con­seguirá reintroduzir sentido na escola e nas aprendi­zagens

6.   Com tudo isto, regresso à notícia do Expresso e fico-me com uma pergunta à qual me atrevo a dar uma resposta, em jeito de provocação: qual o lugar ocu­pado pelos professores perante as crianças em difi­culdade? Quando estas situações acontecessem a que profissionais teremos então que recorrer? Se se tratasse da área da saúde, aos médicos e enfermei­ros, da justiça, aos juízes e advogados…, e falando da educação? Naturalmente aos professores, esses her­deiros da pedagogia e dos pedagogos. Essa herança exige-lhes, contudo, um compromisso ético, o de educar todas as crianças e de ter sempre presente que só há ensino quando há aprendizagem, não po­dendo nunca ficar resignados com as dificuldades dos seus alunos, nem tão pouco desistir de os continuar a ensinar.

Bibliografia


MEIRIEU, Philippe (1991). Le choix d`éduquer – Éthique et Pé­dagogie. Issy-les-Moulineaux: ESF Editeur
MEIRIEU, Philippe. (1998). Aprender... Sim, mas como? Porto Alegre: Artes Médicas.
MEIRIEU, Philippe. (2002). A Pedagogia entre o dizer e o fazer: a coragem de começar. Porto Alegre: Artes Médicas.
SANTOS, L.L. (2013). Entrevista com o Professor António Nóvoa. Educação em Perspectiva, Viçosa, v. 4, n. 1, p. 224-237, jan./jun.
SMYLIE, M. BAY, M. e TOZER, S. (1999). Preparing teachers as agents of change. In G. A. Griffin (Ed.), Ninety-eighth Yearbook of National Society for the Study of Education. (Vol.1, pp.29-62). Chicago: University of Chicago Press. 



1] Meirieu, P. “L´école dáprès”... avev la pédagogie dávant? Entrevista ao “Le café pédagogique” em 17.04.2020.
[2] “A Teach For Portugal existe desde 2018, fazendo parte da rede internacional Teach For All, que atua há mais de 30 anos, em 58 países.
Recrutamos e formamos pessoas de várias áreas profissionais para integrarem o nosso Programa e serem aliados de uma escola durante 2 anos letivos, com foco nos 5.º e 6.º anos.
Estas pessoas, que chamamos de Mentores, têm a função de acompanhar um ou mais professores, atuando em sala de aula. Dinamizam também atividades/projetos que correspondam às necessidades de desenvolvimento dos alunos.”
[3] Os “Mentores Teach For Portugal (...) estão preparados para participar em sala de aula, apoiar em estudo individualizado, desenvolver competências pessoais e sociais dos alunos, realizar várias atividades pedagógicas e lúdicas, entre outros exemplos. O Mentor TFP não é contratado pela escola, mas sim pela Teach For Portugal.”

 

 

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Educação para a Cidadania

Daniel Lousada


Haverá questões cujo tratamento seja vedado à escola, de reserva exclusiva das famílias como pre­tendem alguns? – Interroga-se Ana Maria Bettencourt *. Associo-me às suas preocupações e dou comigo a questionar-me, não sobre o conteúdo mas sobre a forma da dis­ciplina de “Educação para a Cidada­nia”.

Polémicas à parte, que a abordagem de um ou outro con­teúdo levanta, tenho uma dificuldade enorme em ver uma área com esta impor­tância tratada como qualquer outra disciplina, com conteúdos lista­dos num pro­grama, que se des­carregam ao ritmo marcado num horário [todas as semanas, naquele dia, àquela hora]. E tenho mais di­ficuldade, ainda, em vê-la avali­ada de acordo com critérios de avaliação que dão di­reito a ne­gativa, porque não se sabe a ma­téria, e que, por via disso, se pode re­provar. Até por­que o que se im­põe na educação para a cidada­nia não é apenas uma re­forma dos currí­cu­los [elen­cando cada vez mais e mais conteúdos] mas que se convoque a peda­go­gia. É que, nesta área, o que é determinante, não se aprende de ou­vido. Pedagogia, sempre a pedagogia, tão necessária no debate edu­cativo e, estranhamente, quase sempre ausente.

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* "Educação para a Cidadania - Tentativas, fracassos e sucessos". Disponível na página de Inquietações Pedagógicas >>>

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Escola ou ensino doméstico *

Philippe Meirieu
Uma leitura para o caso português de Luís Goucha

Em França, num discurso ao país, o Presidente da República “decretou guerra” ao ensino doméstico. Uma voz levanta-se, a de Philippe Meirieu. Ele quer “limitar, o mais possível”, o ensino doméstico. Con­tudo há vários pedagogos que se manifestam con­tra esta deci­são, e provavelmente menos a favor.

Não podemos de forma nenhuma estigmatizar as famílias que fizeram esta opção pessoal, quase “intimista”, do ensino em casa. No entanto, com todas as suas lacunas, a importância da escola mantém-se incontornável.

A Escola é, antes de tudo, um lugar indispensável à socialização e que, de algum modo, faz uma rup­tura simbólica com a família. Não se trata apenas do lo­cal onde as crianças vão para aprender. É um local onde elas vão aprender a aprender com os ou­tros, para en­contrar pessoas vindas de outros sí­tios, com histó­rias diferentes, com outras convicções que não só aquelas existentes nas suas famílias.

Este encontro com a alteridade e a diferença é es­sencial para o desenvolvimento da criança. Em ter­mos de abertura de espírito, o colectivo escolar tem virtudes que o ensino familiar não permite, ou só muito excepcionalmente terá condições de ofe­recer Percebemos as objecções das associações de pais, que afirmam que a escola não tem suficiente­mente em conta as aspirações dos seus filhos no que toca à criatividade, ao contacto com a natureza e de não estar atenta aos problemas individuais, aos handi­caps de alguns que têm mais dificuldade em acom­panhar uma turma. E isso é verdade!

Se na ideia do Presidente francês a escolarização, e não só a instrução, se torna obrigatória, vai ser pre­ciso que a Educação Nacional faça um esforço real em direcção de todas estas crianças que hoje têm escola em casa. Trata-se, aqui, de ter mais em conta as suas personalidades e singularidades. Me­lho­rar também os contactos, a “mistura entre to­dos”.

A aprendizagem reduzida ao contexto familiar têm o pro­blema de não oferecer um colectivo, o grupo de que a criança precisa para se realizar. Ela tam­bém precisa de al­guém que não seja um familiar para incarnar a transmissão de conhecimentos de uma forma rigo­rosa: é importante distinguir o re­gisto familiar, que é do domínio afectivo, e o re­gisto das aprendizagens cognitivas, mesmo que não exista nenhuma bar­reira entre os dois.

O que estrutura psicologicamente a criança é: “os meus pais gostam de mim, fazem-me descobrir aquilo que eles gostam; o meu professor faz-me descobrir um mundo de modo mais amplo, independentemente das escolhas da minha família”.**

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* No original: “Face à l'instruction à domicile, Phili­ppe Meirieu plaide pour l'école, "rencontre de l’alté­rité et de la différence". LER >>>

** Vejo a família como algo próximo de uma comunidade. (…) O que é decisivo aí são as relações afectivas. (…) O que une uma comunidade são as forças centrípetas que fortalecem o vínculo em torno de algo que aproxima as pessoas.

Entretanto, a sala de aula não é uma comunidade, não pode ser uma comunidade, não deve ser. A sala de aula é uma sociedade. O que acontece aqui pode ser visto como um sintoma da sociedade em que se insere. A educação em ambiente familiar não permite a vivência destes sintomas, ou não permite com a mesma intensidade. 

domingo, 18 de outubro de 2020

Crenças e práticas profissionais dos professores *

François Jarraud
François Jarraud 
Versão portuguesa de Daniel Lousada
Porque é que os professores acreditam que algumas práticas são melhores do que outras? Porque criticam, ou mesmo recusam, certas práticas, cuja eficácia foi [por vezes] demonstrada pela investigação? Estas são questões que agitam os responsáveis pelos sistemas educativos. E uma vez que as suas decisões procuram ser necessariamente racionais, mesmo "científicas", são as "crenças" dos professores que se lhes opõem. A Sèvres International Review of Education [No. 84] publica um número muito interessante que dá uma visão global sobre a formação de professores. Estes professores são loucos ou são incondicionalmente fiéis aos seus valores?

Professores confrontados com imposições de mudança

Géraldine Farges, que coordena este número, está bem ciente de que a palavra "crença", aqui identificada com as convicções pedagógicas dos professores, é problemática. Os artigos desta edição visitam 10 países com sistemas e práticas diferentes: Estados Unidos, França, Coreia do Sul, Tunísia, Brasil, três países da África Ocidental, Canadá, Suíça, Bélgica e Polónia. Na Polónia, "para compreender a resistência dos professores polacos ao conhecimento que lhes é ensinado na formação", o autor fala de teorias pessoais. Na Tunísia e na África Ocidental, fala-se de "crenças ancestrais" ou "tradicionais", na Suíça "crenças prévias", na Coreia do Sul "crenças epistemológicas", nos Estados Unidos "referências culturais" e em França "normas".

Por detrás desta gama de fórmulas, pode-se adivinhar toda uma sociologia da situação dos professores na sociedade. Porque a questão subjacente a esta questão é a da aplicação das concepções decididas para os professores. Como diz G Farges, "pensadas em conjunto, as crenças e práticas dos professores permitem-nos dar um novo olhar à mudança educacional". Pois esta "resistência" [palavra, por vezes, utilizada nos artigos] parece universal.

Entre resistências e apoios à formação?

Um óptimo exemplo é dado pelas escolas "sans excu­ses", em expansão nos Estados Unidos, graças ao financiamento de grandes fundações. Estas escolas, privadas [charter schools] escolarizam crianças em risco de minorias étnicas. Praticam uma disciplina com punições que seriam consideradas inaceitáveis entre nós. Empregam jovens professores, obrigados a seguir protocolos muito rigorosos e precisos, à imagem do que a “Agir pour l'école”, apoiada financeiramente pelo Ministério da Educação, está a tentar praticar em França.

No entanto, explicam JW Golann, A Weiss e K Gegenhei­mer, nem todos os professores respeitam os currículos; há os conformistas que aderem totalmente ao tipo de educação destas escolas; há os imitadores incapazes de entrar no modeloexistem conciliadores que adaptam as práticas da escola aos seus valores; finalmente, existem os resistentes. Os autores concluem convidando os futuros professores a descobrir o seu perfil.

Na Polónia, E Filipiak mostra como as crenças pessoais dos professores podem ser um apoio para a sua formação. "Para que os professores repensem a escola, assumam o desafio de abrir a cultura escolar a outras perspectivas e se envolvam no processo de mudança, é necessário preparar o terreno, trabalhar com as suas teorias e crenças pessoais... Nesta abordagem, revelou-se importante fornecer ferramentas conceptuais, que permitissem aos professores participar nos debates, contribuindo para a reinterpretação e mudança das suas próprias práticas. Os exemplos de projectos desenvolvidos demonstraram que, ao criar uma comunidade de aprendestes, analisando e participando em práticas semelhantes, os professores desenvolvem modos de entendimento partilhado, formas de pensar e agir colectivamente: um sentido de acção".

A resposta de uma profissão submissa

Crenças, teorias pessoais, normas…, Maurice Tardif [do Quebeque] dá-nos as chaves de uma análise sociológica para compreender o que está a acontecer, esta famosa "resistência à mudança". Para ele, a questão coloca-se porque os professores se tornaram profissionais submissos. "As crenças colectivas [de professores] não são verdadeiras nem falsas porque a formação de professores não é científica, como as permanentes controvérsias a seu respeito mostram: é uma construção social, produzida por vários grupos e organizações [estado, universidades, autoridades escolares e patronais, sindicatos de professores e ordens profissionais. fundações privadas, etc.] que tentam defini-la de acordo com as suas perspectivas e interesses”. Para ele, "estas crenças testemunham (...) a situação so­ciopro­fissional dos professores em relação a uma formação sobre a qual têm muito pouco controlo, e que sempre foi definida e imposta pelas autoridades políticas e educativas, bem como pelas elites académicas. Neste sentido, estas crenças exprimem a racionalidade de uma profissão submissa, cuja função é formar outros, mas que tem muito pouco a dizer sobre sua própria formação".

Maurice Tardif mostra como a profissão de professor se tornou uma profissão amarrada às imposições da sua hierarquia. A peculiaridade de uma profissão submissa é que a sua própria formação lhe escapa. "Os milhares de estudos dedicados, desde os anos 80, aos conhecimentos profissionais dos professores, indicam que estes assentam em bases que são simultaneamente incertas e heterónimos para as suas práticas profissionais (…). Observa-se que a maioria das categorias de conhe­ci­mento [de currículos, objectivos educativos, contexto social, disciplinas a ensinar, etc.] provém de grupos de actores [académicos, investigadores, funcionários públicos, especialistas em currículos, etc.] que não são professores e que não pertencem, directa ou directamente, à profissão docente". Numa profissão sem voz, os conhecimentos específicos, que poderiam afirmá-la, não contam.

"As crenças colectivas dos professores provêm de uma espécie de "racionalidade cognitiva" [Boudon, 1993], através da qual os professores exprimem as razões para acreditar no que acreditam, com base na sua experiência enquanto professores. Os professores, em geral, acreditam que aprenderam a ensinar, principalmente, através da sua experiência de trabalho escolar, e não através do que aprenderam nas escolas de formação. Muitos professores acreditam, também, que a competência pedagógica é principalmente uma questão de personalidade, talento e mesmo vocação, e não de formação. São uma resposta às relações de submissão, em que se sentem amarrados.

Tensão entre eficiência e submissão

Françoise Carraud prefere encarar a questão a partir das representações, que apoiam as opções que os professores experimentam: o que é para eles um "bom trabalho"? E isto leva-a a analisar duas situações que todos os professores conhecem. "Ter uma turma que funciona", constituída por alunos que garantem o sucesso dos professores, na sua missão de transmissão do conhecimento. Ter uma turma que funciona permite-lhes afastar o “fantasma da (sua) impotência. A segunda situação é aquela em que se tenta medir o grau de eficácia que pode ser atribuído aos professores e às suas práticas, de acordo com contextos so­cio-geográficos. Quando se pretende avaliar este grau de eficácia, os professores refugiam-se no seu próprio sentimento de eficácia, enfatizando, antes de mais, a eficácia de uma "turma que funciona. E aqui surge “o debate entre o padrão de eficácia, que é quase impossível de medir, e o de utilidade. Ser professor é ser útil, útil às crianças e adolescentes que, sem o professor, não conheceriam a ‘cultura’. Esta noção de cultura, que é polimorfa e instável, também é debatida, mas permanece no interior da profissão docente".

Géraldine Farges conclui. "Se as crenças profissionais dos professores forem consideradas como um factor determinante no desenvolvimento das suas práticas, ou mesmo a serem tomadas como ponto de partida para actividades de formação, estas, quer individuais quer colectivas, devem também cumprir as directrizes institucionais. Daqui resulta, que as crenças dos professores são centrais na construção da profissão docente, mas também marginalizadas pelos sistemas educativos, que não toleram uma tão grande diversidade de crenças. Há, portanto, aqui um ponto de tensão: com maior autonomia, os professores sentem-se mais eficazes [e acreditam mais no que fazem], correndo o risco de se afastarem do projecto político em que a sua acção educativa está mais globalmente enraizada". Esta é, mais do que nunca, a questão.

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* Ler versão original: Croyances et pratiques professionnelles des enseignants”, L’Expresso, Le Café Pédagogique >>>