quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ainda à procura do melhor método de iniciação à leitura! E não saímos disto!

Algumas coisas que eu sei sobre o assunto

[Também disponível em PDF>>>]

Percorro "A pedra e o desenho" de Gonçalo M. Tavares,[1] com desenhos de Julião Sarmento, e detenho-me ao ler: "Toda a escrita tem a forma de vestígio; todo o vestígio a forma da escrita". Na continuação do percurso, umas páginas à frente, detenho-me novamente ao encontrar-me com "Todas as letras deixam vestígios atrás. Ler é estar atento aos vestígios, não às letras". Fixo-me nesta última expressão: "Ler é estar atento aos vestígios, não às letras". Releio-a... Horas antes tinha-me encontrado, no "Le Figaro", com o artigo de Caroline Beye, apresentado com a pergunta “Pourquoi les méthodes inefficaces dominent à l'école?”[2], uma espécie de manifesto a favor do regresso dos métodos fónicos à escola [da qual nunca saíram], dando voz ao movimento neste sentido liderado pelos cientista do cérebro. E fico perplexo! Como se os métodos fónicos [atentos às letras], nas suas múltiplas variantes, não tivessem liderado o processo de iniciação à leitura, pelo menos até à entrada dos anos setenta [se é que não lideram ainda], com o resultado que se viu.

Frank Smith, na introdução ao seu livro “Aprendizagem significativa, dizia que se fosse responsável por ensinar a ler um grupo de crianças precisaria apenas de: 1- saber muito de leitura e escrita, do seu processo de construção, como é vista pelas crianças; 2- e saber muito sobre as crianças que teria frente a si, se sabiam já distinguir os sinais convencionais de escrita de quaisquer outros sinais, o que é que elas conheciam desse objecto chamado escrita [3]. Porque, sejamos claros, nenhuma criança precisa de um adulto à frente para começar a aprender a ler. São essas aprendizagens que a criança fez “sem autorização” que é importantíssimo (re)conhecer no decurso do processo. Ora, nesta perspectiva, o método didáctico, tal como o conhecemos, atrapalha mais do que ajuda. Porque as crianças não querem saber do método escolhido, elas querem apenas saber; compete então ao adulto ajudá-las a dar sentido às letras a partir dos "vestígios" que mereceram a sua atenção, para que além de quererem saber elas queiram também aprender [4].

“Ler é estar atento aos vestígios, não às letras”. Foi certamente no encontro com estes vestígios que Alberto Manguel aprendeu a ler: "Descobri que sabia ler aos quatro anos. Já tinha visto vezes sem conta as letras que sabia [porque mo tinham dito] serem os nomes [os vestígios] das imagens debaixo das quais se encontram. (...) Mas havia mais: eu sabia que aquelas formas não só reflectiam o menino por cima delas, mas também diziam o que o menino estava a fazer"[5].

Certos "cientistas do cérebro" confundem o ensino da leitura com a prática de rituais impressos nas cartilhas que condenam. Nada sabem de ensino da leitura de facto! Pelas suas investigações, assentes na observação do funcionamento do cérebro, elegem as consciências fonética e fonológica como determinantes na aprendizagem da leitura e, vai daí, apontam um método a partir desta eleição! Mas nada dizem sobre a forma como as crianças acedem àquelas consciências fonológica e fonética. E esquecem que os resultados de uma investigação não fazem uma pedagogia. Se o fizessem teríamos uma pedagogia científica [não seria pedagogia, portanto] e a educação seria uma ciência [6].

Se uma criança a soletrar palavras, envolvida no trabalho de associação de fonemas com os respectivos grafemas, faz "disparar o fogo de artifício" que  "ilumina" uma determinada zona do cérebro, quando muito poder-se-á concluir pela importância dos sons da fala, no processo de aprendizagem da leitura. Não é de todo legitimo retirar da observação deste "espectáculo" a superioridade dos métodos fónicos sobre todos os outros. Até porque nenhum método descarta a importância da consciência fonológica; têm é formas diferentes de chegar a ela e desenvolvê-la.

"Não existe uma ligação directa entre o que os investigadores fazem e o que é feito na sala de aula" – afirma Edouard Gentaz –. "A investigação é necessária. Mas não se pode retirar receitas sem uma análise crítica do contexto"[7]. Emília Ferreiro, por sua vez, alertava os professores para não fazerem um método didáctico a partir da investigação que realizou na década de setenta, na área da psicolinguistica. Porque as conclusões da ciência não servem para ser transformadas num método, mas para ajudar a tomar decisões. Decisões pedagógicas, não científicas.

Desde que me conheço, como professor, que nos interrogamos sobre o melhor método de ensino da leitura e da escrita. Chega de perguntar por ele! Esse método [didáctico] não existe! O que existe são informações, ideias, sobre o modo como as crianças aprendem. O que temos é um objecto [a escrita] ao qual queremos que as nossas crianças acedam.

“Todas as letras deixam vestígios atrás. Ler é estar atento aos vestígios, não às letras". Então vamos trazer a escrita para a escola, não as letras, e descobrir com ela [a escrita] onde nos levam as letras. Porque ninguém aprende sobre um objecto se não lhe for dado manipulá-lo, para ver de que é feito.

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[1] Lisboa, Relógio D'Água, 2022
[3] Porto Alegre, Artmed, 1999  "Se eu realmente fosse responsável por ensinar um grupo de crianças numa manhã de segunda-feira (...), precisaria de ter a certeza de que saberia o suficiente sobre leitura em geral e sobre aquelas crianças em particular para nunca precisar de fazer essa pergunta a um estranho".
[4] Philippe Meirieu distingue o querer saber do querer aprender. Eu gostava de saber muita coisa, mas nem sempre a intensidade do desejo me faz querer despender o esforço que o trabalho de aprender exige. 
[5] Uma história da leitura, Lisboa, Editorial Presença, 1998
[6] Temos ciências da educação que ajudam a tomar decisões nesta área; não temos a ciência da educação que aponta o caminho definitivo, sem desvios.

sábado, 19 de novembro de 2022

Da criança que apenas quer saber à criança que deseja aprender

In "Ce que l'école peut encore pour la démocracie - Deux ou trois choses que je sais (peut-être) de l'éducation e de la pédagogie", Autrement, Paris, 2020.
Versão portuguesa de Daniel Lousada [também disponível em pdf >>>]

Não estou certo de que a criança que eu fui tenha saboreado espontaneamente o desejo de aprender. Sem ofensa àqueles entusiastas que se espantam com a infância curiosa e ávida de conhecimento, acho que o desejo de aprender é uma construção lenta e complexa, em grande parte dependente do empreendimento educativo.

Naturalmente que toda a criança deseja ter tudo e tudo saber, não tenho qualquer dúvida sobre isso. Deste ponto de vista, o nascimento representa um trauma do qual ela levará algum tempo – às vezes até toda a vida – a recuperar. Primeiro ela precisa de aceitar que não terá, ou dificilmente terá, satisfação imediata: ela tem fome e frio, pede o olhar da sua mãe e o colo do seu pai, mas apesar do carinho que estes sentem por ela, às vezes estão ocupados com outros afazeres. Ela é obrigada a esperar e, ao esperar, descobre que não é o centro do mundo. E que a frustração faz parte da sua vida. Mas é uma frustração que se transforma numa satisfação mais intensa quando recebe a atenção que deseja. É, portanto, uma frustração que precisa de aprender a viver como uma promessa. Porque é na descoberta do prazer da espera que se encontra a fonte do desejo. Um desejo que não acaba na sua realização, porque guarda a memória da espera e mantém aberta a possibilidade do imprevisto. Um desejo que rompe com a exigência caprichosa da posse imediata e torna possível a transição criadora do “ter” ao “ser”, quando se renuncia à voracidade do tudo de imediato para se tornar disponível ao que nem sempre é possível ser dado, ao que poderá acontecer sem estar já previsto. Quando desistimos de nos identificarmos com o que temos para alcançar o que está para além de nós.

Os adultos têm, neste domínio, o dever imperioso do acompanhamento. Cabe-lhes ser o rosto da promessa que permite à criança transformar as suas frustrações em esperança: «Não podes ter tudo porque desejas. Mas é o desejo que te faz crescer se, pelo desejo, conseguires escapar da subjugação aos teus impulsos. É o desejo que te levará, um dia, a procurar um significado para a tua existência num lugar que não o da tua família». Metabolismo libertador se é que existe: permite emancipar-se dos seus próprios caprichos e resistir aos apelos publicitários da sociedade de consumo. Permite-nos desfrutar daquilo que nos faz humanos por excelência: o adiamento da acção e a suspensão da voracidade consumista, a disponibilidade para a alteridade, a abertura ao pensamento.

E, tal como têm o dever de ajudar as crianças a libertarem-se da tirania do ter, os adultos têm também o dever de as ajudar a emanciparem-se da “ditadura do saber”. Porque se a criança não quer aprender espontaneamente, ela quer certamente saber. Desvendar o mistério das suas origens, com certeza. Mas também, bem depressa, os mistérios do universo. Não é de surpreender, portanto, que ela, desde muito cedo, repita incansavelmente “porquê?” sem realmente se aventurar muito no “como?”. É que o “porquê” exprime a sua necessidade de encerramento, atesta a sua vontade de ter uma explicação que a preencha e, portanto, extinga a sua procura. Funciona no mesmo registo do capricho: “Tudo já”. Dispensa tanto a aprendizagem como o capricho procura dispensar a espera, que o acto de aprender exige. Quer uma explicação definitiva, pois o capricho exige a posse imediata.

Crescer é, portanto, assumir a própria incompletude e partir rumo ao desconhecido. Crescer é renunciar ao saber desligado do trabalho de aprender. É recusar dar-se por satisfeito com explicações superficiais totalizantes. Significa, de uma vez por todas, romper com os sistemas que apoiam os porquês que descartam o como.

Ora, crescer é talvez mais difícil hoje do que em qualquer tempo passado. Em primeiro lugar, porque a incerteza dos nossos destinos individuais e colectivos torna-nos cada vez mais vulneráveis aos vigaristas das certezas absolutas. Em segundo lugar, porque à simplificação dos dogmas juntaram-se todo o tipo de teorias da conspiração: Ambos, frequentemente construídos sobre a mesma lógica de “bode expiatório”, afirmam abraçar a "verdade" sem qualquer reflexão ou investigação, entregando-se ao pensamento caprichoso das certezas inquestionáveis. Preenchem a nosso pensamento e, ao preenche-lo, fazem-nos seus escravos ao esconder de nós qualquer falha que os possa questionar.

Escusado será dizer que todo este pensamento mágico é amplamente ajudado pelo fantástico desenvolvimento das “próteses tecnológicas” de hoje: instrumentos automatizados conectados em rede, aplicativos digitais e “motores de busca” – terrível oximoro! – de todo o tipo: «Sobretudo, não faças perguntas sobre o seu funcionamento! É magia! Temos todas as respostas, só precisas de fazer as tuas perguntas». Porquê aprender, de facto, quando basta um treino de curta duração no "manuseamento intuitivo" destes dóceis servidores, que colocam a omnipotência na ponta dos nossos dedos, para aceder, ao ritmo frenético dos algoritmos e das redes sociais, a todos os saberes [mas não ao conhecimento] do mundo?

É assim que as nossas crianças – ou pelo menos aquelas que não tiveram a sorte de ter uma comitiva de adultos a inculcarem-lhes o desejo de aprender – lutam por entender a teimosia dos seus professores: elas são convidadas a sacrificar actividades, das quais obtêm satisfação imediata, em favor de exercícios intelectuais que parecem ter sido inventados por professores sádicos, com o único propósito de verificar a sua capacidade de realizar tais exercícios. Prometem-lhes para mais tarde uma vaga satisfação, se conseguirem integrar-se no mercado de trabalho. Mas essa é uma satisfação que permanece bastante distante e, se quisermos ser honestos, cada vez mais aleatória. Então, por que não cingir-se a algumas competências transmitidas empiricamente por corporações sociais e a algumas representações resumidas, que lhes fornecem as chaves para ler um mundo agora reduzido a um cenário de jogo de computador? Porquê dar-se ao trabalho de aprender, fazendo operações que as máquinas, cada vez mais “androidizadas”, farão sempre mais rápido e melhor do que nós? Porquê "abrir o capô" e tentar compreender como funciona o motor quando tudo o que precisa é da chave de ignição? Porquê preocupar-se com conhecimentos geográficos, históricos, económicos ou filosóficos, quando tem um terminal digital miniaturizado no seu bolso que pode responder a tudo? Porquê ler e documentar, questionar e confrontar as suas posições com as dos outros, quando é muito mais confortável acampar num qualquer dogma, com o qual se identifica e que, partindo deste, pode decidir sobre tudo sem nunca ter examinado nada?

Existe um metabolismo decisivo que o adulto deve acompanhar a fim de ajudar as crianças a escapar do comportamento infantil, que lhes é próprio, do saber sem compreender: é necessário, de facto, que estas consigam encontrar mais prazer no pensamento assente na tentativa e erro do que na opinião certa não construída por elas. Precisam de descobrir que existe mais satisfação na busca da precisão, da justiça e da verdade, do que na afirmação presunçosa de uma doutrina. Precisam de encontrar o prazer de enfrentar o obstáculo que as obriga a examinar, investigar e reflectir, em vez de se esquivarem a ele com trejeitos desdenhosos ou procurar destruí-lo em ataques de raiva. Trata-se de um metabolismo lento e complexo que requer situações estimulantes e o acompanhamento de adultos exigentes, um metabolismo que, gradualmente, transforma a "criança que apenas deseja saber" num "sujeito que procura aprender". Um metabolismo que permite protegê-las da maldição das certezas absolutas, que raramente são suas.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

As neurociências não vão revolucionar as escolas

Edouard Gentaz numa entrevista conduzida por François Jarraud para "Le Café Pédagogique"

Nenhuma disciplina científica pode razoavelmente fornecer uma receita pedagógica mais ou menos milagrosa.

Será este livro uma reacção ao imperialismo das neurociências?

Não, é uma reacção ao mau uso das neurociências. O que dou é uma opinião sobre a sua má utilização na educação. Tento mostrar as contribuições de cada disciplina e explicar melhor o que são realmente as neurociências e o que elas podem oferecer relativamente a outras disciplinas. Precisamos de uma visão multidisciplinar para compreender a escola e a educação.

Podem as neurociências ditar as práticas de ensino?

Não, não podem. Mas podem lançar luz adicional sobre outras disciplinas. O que pode realmente lançar luz sobre as práticas é a colaboração entre professores e investigadores no sentido de desenvolver uma investigação que possa ter efeitos sobre as práticas profissionais.

No livro, critica o guia ministerial sobre a aprendizagem da leitura. Porquê?

Por detrás desta crítica, está a ideia de discutir a ligação entre ensino e investigação, as recomendações que podem ser feitas e o que é ou não legitimo concluir sobre a investigação. Não existe uma ligação directa entre o que os investigadores fazem e o que é feito na sala de aula. A investigação é necessária. Mas não se pode retirar receitas sem uma análise crítica do contexto. 

Por outro lado, é importante declarar eventuais conflitos de interesses. Este é um dos princípios básicos que seguimos quando escrevemos recomendações ou qualquer tipo de actuação. O mesmo princípio deveria ser adoptado na educação.

O livro também critica a pedagogia Montessori e a Meditação, práticas que se estão a difundir rapidamente na escola francesa. Porquê?

Sou crítico dos usos que são feitos da pedagogia Montessori e dos argumentos apresentados em sua defesa, quando se diz, por exemplo, como é dito por Alvarez, que a pedagogia Montessori se baseia nas neurociências. Quando analisamos esta pedagogia, verificamos que os resultados não são tão claros assim. A pedagogia Montessori não é o alfa e ómega da pedagogia e não resolverá todos os problemas. No fim de contas, entre as escolas Montessori e as outras escolas, as diferenças nos resultados não são significativas.

O mesmo se passa com a meditação. Pode ser um bom instrumento para trabalhar a atenção ou competências psicossociais. Mas não há provas no que respeita aos resultados dos alunos.

O que normalmente recomendaria para o jardim-de-infância?

No jardim-de-infância, são desenvolvidas competências nas crianças, que parecem fazer parte de actividades extracurriculares, quando deveriam fazer parte do seu currículo mesmo. Estou a pensar nas brincadeiras, nos jogos, nas actividades lúdicas, no brincar de faz de conta, hoje infelizmente em desuso. E no entanto, são essenciais no jardim-de-infância, pelos efeitos positivos que produzem. Ao formarmos e incentivarmos os professores a dar a estas actividades o seu devido lugar, ajudamos as crianças a regular as suas emoções, a melhorar as suas competências emocionais e, portanto, académicas. É também essencial no apoio ao desenvolvimento da língua. Em Genebra, conseguimos integrar estas actividades no currículo escolar.

Em geral, pode a investigação ditar as práticas pedagógicas?

Não. Ela pode apenas alimentar a reflexão. É uma alavanca para a tomada de decisões. Pode mostrar aos professores os resultados da investigação, mas cabe ao professor, na sala de aula, encontrar a prática profissional adequada. E este é um exercício muito complicado.

Neste livro, pede uma revisão da formação de professores. O que precisa de ser mudado?

A instrumento mais eficaz para melhorar o ensino é a formação de professores. O que se faz hoje em dia, nesta matéria, é insuficiente. Ela deveria ser mais longa e promover mais estreitamente a ligação entre a teoria e o trabalho de campo. Dada a complexidade da profissão, não é possível formar professores rapidamente, especialmente se forem do 1º ciclo, que leccionam muitas disciplinas escolares e que, além de transversais, se dirigem a públicos muito diversos. A esta formação deveria seguir-se uma formação contínua, que poderia passar pela frequência de "um ano na universidade" a cada 4 ou 5 anos.

[Versão portuguesa: DL]

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ensinar exige ética e estética

A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. Cada vez me convenço mais de que, desperta com relação à possibilidade de enveredar-se no descaminho do puritanismo, a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência de pureza. Uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos tentados, às vezes ou quase sempre, a deixar as dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos colocar. Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso nos fizemos éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe dela, ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu carácter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perosa de pensar errado. De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a verdade, 
um rotundo desacerto. Pensar certo, pelo contrário, demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos factos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo. Mas como não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda - exige o pensar certo - que assuma a mudança operada. Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente.

Paulo Freire

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A propósito de Neurociências e do cérebro que aprende a ler

Stanislas DEHAENE [1] desconfia de «cartilhas de desenhos e pouco texto. Existe o risco enorme de os alunos memorizarem as posições fixas de cada palavra. Dão a impressão de saberem ler, mas não sabem» − Já eu sou avesso a qualquer tipo de cartilha, tenha ou não bonecos. Haja um ministro da educação que se disponha a vedar-lhes a entrada na escola, e tem-me a seu lado. Mas isto são contas de outro rosário, que deixo para outras escritas −. «Em vez de focar os esforços no ensino das unidades visuais, é preciso mudar para unidades auditivas. Sons, fonemas», continua Stanislas DEHAENE, reforçando a ideia de que, no que diz respeito à aprendizagem da leitura, «o cérebro aprende melhor pelo som do que pela imagem»[2] Uma ideia a merecer algumas considerações.

Vem isto a propósito da notícia que dá conta de que, em França, o «"Conseil scientifique de l’Éducation nationale" deplora a utilização do método misto nas escolas».

O tratamento fonológico da palavra é importantíssimo, ninguém tem sobre isto qualquer dúvida. Mas a aprendizagem da leitura não se reduz ao desenvolvimento da consciência fonológica. Até porque sem a imagem que nos chega pelos olhos [ou pelo tacto, no caso da pessoa cega], não há leitura: a leitura faz-se do encontro do fonema [que o ouvido aprendeu a captar], com o respectivo grafema [que os olhos aprenderam a ver]. E é na realização deste encontro que tudo se complica. Porque o fonema, que o grafema dá a ver, exige uma grande capacidade de abstracção: à silaba podemos chegar facilmente pela fala, falando pau-sa-da-men-te; mas ao fonema, fora de uma aprendizagem da leitura onde a palavra está ausente, só com muita dificuldade chegamos a ele, se chegarmos[3].

As crianças que memorizam as posições fixas das palavras não dão [porque não é isso que querem] a impressão de saberem ler. Esta impressão está somente na cabeça dos que vêem os seus gestos dessa forma. Elas estão apenas a fazer de conta. Uma forma muito própria de entrar no mundo dos adultos e do qual a escrita faz parte. Nós só temos de seguir os seus gestos e facilitar-lhes a entrada. Uma criança que "lê de memória"[4] sabe que não sabe "ler de verdade". Mas com isto aprende algo de muito importante sobre a escrita, se nos dispusermos a ensinar-lhe: que a posição da palavra na frase conta, e que se a palavra mudar de lugar a frase não é a mesma e, provavelmente, deixa de fazer sentido. E o mesmo se passa relativamente ao lugar que a letra ocupa na palavra.

Quando falo de leitura, falo da leitura que o fascínio da escrita nos convida a fazer. Um fascínio autêntico das crianças pequenas, que fica tantas vezes à porta da escola. Célestin FREINET foi, talvez, o pedagogo que melhor interpretou este convite numa prática. Abriu a escola à escrita [que o professor faz] da fala das crianças. Com ele a leitura é, desde o início do processo de aprendizagem, um meio de aceder a ela [escrita]. E, num tempo sem zonas iluminadas do cérebro para ver, a palavra surgiu na sua totalidade visual e sonora, plena de significado[5], no decurso da aprendizagem da leitura.

Nem tudo o que se passa no decurso do processo de aprendizagem da leitura e da escrita tem de ser "científico" ou se explica "cientificamente". Se Stanislas DEHAENE desconfia da utilização da imagem no ensino da leitura, eu desconfio das práticas pedagógicas amarradas unicamente a conclusões da ciência. A pedagogia não se dá bem com ditaduras científicas: tem na devida conta os conhecimentos que a ciência produz, mas não corre a fazer um método com eles: os resultados de uma pesquisa não são para ser, necessariamente, transformados num método. Caímos nesse equívoco no passado, e parece que queremos voltar a embarcar no engano: duas áreas do cérebro, ligadas ao tratamento fonológico, "iluminam--se" durante a aprendizagem da leitura, e corremos logo a proclamar as vantagens dos métodos fonéticos sobre os demais, como antes proclamámos a superioridade dos métodos globais, escudados então nas descobertas do gestaltismo. E esquecemos que um método didáctico é um protocolo para administrar com cuidado. Até porque nem todos reagem de acordo com o esperado, e é precisa muita atenção aos efeitos secundários!

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[1] Director da unidade de neuroimagem cognitiva do Instituto Nacional de Pesquisa Médica e de Saúde de França [in Aprender a ler: uma revolução no cérebro. Entrevista conduzida por Mariana SGARIONI, para a revista Neuro Educação.

[2] Ideia baseada na observação que dá conta da activação de duas áreas do cérebro ligadas ao tratamento fonológico, durante a aprendizagem da leitura.

[3] José MORAIS, num estudo publicado em “A arte de Ler” [Edições Cosmos, Lisboa, 1997] com adultos analfabetos, dá conta de que estes não possuem consciência fonética.

[4] No português europeu dizemos que aprendeu de cor, que traduzimos do francês «aprendre par coeur», aprender pelo coração.

[5] Afinal, ensinar a ler só faz sentido com o sentido daquilo que se ensina a ler presente. Um sentido que a investigação de Stanislas DEHAENE, não contempla.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

A escrita satisfaz necessidades de diálogo com o real que nos acolhe

Durante um ano lectivo fui lendo os escritos de uma criança de 9 anos, com muitas dificuldades escolares, alheado, aparentemente desinteressado, quase apático ao que o rodeava. Neste falso ar de sonhador, consegui interessá-lo pelo que parecia ser o mais difícil: a escrita. Com a valorização que o grupo de colegas lhe deu, começou a escrever regularmente, acompanhando-os e fazendo como eles..., aproximando-se, desta forma, de um outro modo mais normal de se relacionar connosco.

Vários dos seus textos relatavam os seus fins-de-semana, descreviam a casa onde habitava, os pais no 1º andar e os avós no rés-do-chão... E enquanto os pais não chegavam do trabalho, ele ficava em casa dos avós, e esperava. A escrita envolvendo figuras familiares e suas vivências repetia-se: uma casa com vida própria, que se distinguia das casas dos colegas que moravam em prédios, com muitos andares e confusão. Tudo absolutamente normal, harmonioso, feliz para uma criança de 9 anos!

E assim vivemos um ano, com a escrita como importante elemento de trabalho aglutinador. Era uma escrita livre e libertadora[1], como toda ela deve ser, mesmo dentro de um quadro de aprendizagem imposto pelos programas escolares.

No fim do ano lectivo participei numa daquelas reuniões de avaliação global, a que chamávamos de “estudo de caso”, envolvendo todas as pessoas referidas àquele “caso” [esta criança de 9 anos] e a sua família. Levei comigo tudo o que até então vivêramos e que tinha como bom: as descrições e a harmonia que transparecia dos seus escritos.

Foi-me então dito que esta criança nunca conhecera o pai nem os avós, e que estava ao cuidado de uma tia, irmã da mãe, já que esta se tinha desinteressado dele.

Fiquei contente por ele: que se lixe “a” verdade, pensei. A verdade que ele construiu é bem mais forte. Com a escrita satisfez necessidades pessoais íntimas, em diálogo com o real que o acolheu ou por ele acolhido, tanto dá.

Não é por acaso que Edward Bunker, em a “Educação de um ladrão”[2], diz que algumas vezes teve de vender sangue para pagar o curso de escrita criativa por correspondência, da Universidade da Califórnia, realçando desta forma a importância da escrita, que vai muito além da função de comunicação que lhe é reconhecida. E, por sua vez, José Ovejero, diz, em “Escritores delinquentes”[3], que escreve porque, com a escrita, tem um instrumento que lhe permite derrubar a aparente ordem da realidade, já que contar histórias é uma maneira de entender o mundo, com frases que soam mais ou menos bem, com maior ou menor justeza. A escrita pode ser um instrumento poderoso de mediação com um mundo que agride.

Dar esse poder às crianças é dar-lhes uma "arma de defesa pessoal". É tão importante saber escrever para poder escrever as suas histórias, histórias determinantes, em muitos casos decisivas nas suas vidas. E daqui o cuidado em não querer saber mais do que a criança, com a sua escrita, quer contar; a atenção que é preciso ter para não invadir a sua vida, evitando confrontá-la com as histórias que conta, numa espécie de coscuvilhice ou psicanálise de pacotilha.

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[1] No sentido do que lhe atribui Freinet, quando propõe a prática do “texto livre”

[2] Edward Bunker. Education of a Felon. Newy York, St. Martin’s Press, 2000

[3] José Ovejero. Escritores Delincuentes. Madrid, Educiones Alfaguara, 2011