domingo, 23 de outubro de 2022

Educação escolar: Entre a civilização e a barbárie

[TAMBÉM DISPONÍVEL EM PDF>>>]

O futuro há-de brotar da escola. Tudo que for edificado sobre outra base ficará construído sobre areia. Mas, por desgraça, a escola pode tanto servir de cimento para os baluartes da tirania quanto para os castelos da liberdade. Deste ponto de partida podemos arrancar tanto a barbárie quanto a civilização” - F. FERRER i GUÀRDIA[1].

Situamos Francisco Ferrer no seu tempo e recordamos que, nesse tempo, fazia-se ainda a distinção entre educação e instrução. Imaginamos então Ferrer como alguém à frente do seu tempo, a recusar o acto de instruir fora do acto maior de educar. Porque a escola que tem a ilusão de que apenas instrui e deixa a responsabilidade de educar nas mãos da “vida privada”, arrisca-se, sem disso se dar conta, a educar para a barbárie. E no entanto, escreve-se por aí, com tanta insistência, em tantos “sítios” dedicados à educação e ensino, que «a família deve educar para que a escola possa ensinar!». Talvez que esta insistência não seja mais que um desabafo de quem não vê reconhecido o seu trabalho e reivindica o apoio que não tem! Talvez! Mas mesmo assim não conseguimos evitar a provocação, numa pergunta: E se a família não educa, a escola desiste e não ensina?
 
A escola educa e ao educar instrui. A escola instrui e ao instruir educa. Mas para que possa educar ao instruir, precisa conhecer o sentido educativo da instrução que oferece. E aqui sobressai a importância de uma abordagem educativa por competências[2]
.

Podemos, por exemplo, ensinar história, passando apenas às crianças e jovens uma colecção de factos. Ao ensinar desta forma, conseguimos, talvez, pessoas instruídas! Mas só educamos se, no decurso do processo, as ajudarmos a ser melhores pessoas. Educamos, então, não em função de um futuro que não controlamos, depois de passado o tempo de vida na escola [porque não há como preparar alguém para vida que terá num futuro a 20 anos de distância], mas para o dia-a-dia vivido na sala de aula, na forma como convocamos a história [e outros saberes], na procura da compreensão do caminho que temos caminhado e dos caminhos que temos para caminhar. A ideia de uma “educação para a vida” não pode deixar de estar presente, obviamente. Mas se não conseguirmos, pela nossa acção, que as crianças e jovens que nos são confiados sejam boas pessoas hoje, não sei se o conseguirão ser no futuro! Daqui decorre «a proposta de que os conteúdos de ensino deveriam ser definidos em relação a práticas sociais cruciais para a vida dos cidadãos, mais do que num retomar de conhecimentos pré-definidos»
[3].

Valores e atitudes não são conteúdos de um programa que se passem “de cátedra”, através de formas tradicionais de ensino: são competências sociais que decorrem dos modelos de organização educativa em que se inscrevem. Mas a “gramática da escola” [aquela da tradição, que separa a educação da instrução] não se cansa de nos empurrar para o trivial, o “palpável” [a colecção de factos referidos atrás] que, pela sua “clareza”, nos dispensa de pensar. Então, torna-se necessário um olhar moderno sobre as competências sociais, para que, ao procurar integrá-las no currículo escolar, estas possam ser aprendidas e mantidas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas apenas em discursos, num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da sua avaliação.

Do conjunto de saberes que a escola oferece, Philippe Perrenoud fala dos saberes como recursos [recursos “internos”, nas suas palavras]: os saberes que, uma vez guardados, nos ajudam a viver; aqueles saberes «que o indivíduo tem dentro de si, que, de uma certa maneira, estão registados na memória, incluindo a “memória do corpo”»
[4]. Saberes que orientam os nossos gestos, na relação que temos com o mundo, diríamos de um modo automático ou quase, que não precisam de grandes reflexões ou de serem reflectidos de todo, porque já foram reflectidos por nós, ou por interposta pessoa, no decurso do processo que os incorporou em nós. No entanto, sabemos, com Le Boterf, que «a competência não é um estado, e sim um processo»[5], e que a desactualização do saber que a sustenta faz parte, inevitavelmente, da sua natureza. Diz-se, então, a propósito, que as competências não são nem objectivos nem transversaisobjectivos foram os conhecimentos adquiridos, desejavelmente transversais, que as sustentam.
 
Daqui a importância de revisitar, ou (re)descobrir, os “saberes” que levam à abordagem de um problema desta maneira, daquela ou de outra qualquer, ou fazem agir por impulso[6].

_________________

[1] Ferrer Y Guàrdia. Escuela Moderna: páginas para la história, Barcelona, Publicaciones de la Escuela Moderna, 1912: p. 22.
[2] Há formas e formas de “desenhar” um currículo por competências, mas não há forma de o desenhar se o conhecimento estiver ausente. Não compreendemos, portanto, esta insistência na oposição conhecimento/competência, que não consegue desligar-se do conceito que nos chega da empresa, e que não é de todo o conceito a trabalhar na escola. Porque «o operador competente é aquele que é capaz de mobilizar e de colocar em prática, de modo eficaz, as diferentes funções de um sistema no qual intervêm recursos tão diversos quanto as operações de raciocínio, os conhecimentos, as activações da memória, as avaliações, as capacidades relacionais ou os esquemas comportamentais. Essa alquimia continua sendo uma terra amplamente incógnita» (Le Boterf, De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994:17).
[3] Olivier Rey in Notas críticas ao livro de Philippe Perrenoud “A escola deve preparar para a vida” [LER MAIS>>>].
[4] Philippe Perrenoud. “Desenvolver competências ou ensinar Saberes? A escola que prepara para a vida”. Porto Alegre, Penso Editora Lda, 2013: p. 46.
[5] Le Boterf, G. De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994: p. 17. 
[6] Por exemplo, revisitar e desconstruir saberes que induzem certos tipos de comporta­mento, alguns saídos de uma certa cultura tradicional popular: “Olho por olho, dente por dente”, “Só quem é duro se dá ao respeito”, …

sábado, 22 de outubro de 2022

A liberdade de organizar escolas diferentes

Ter uma escola para todos [não falamos da obrigatoriedade escolar legislada em 1835], sendo um objectivo do nosso país, é-o apenas há algumas dezenas de anos, não sendo, ainda, uma ideia que percorra a totalidade dos países do mundo. Sabemo-lo todos.

Contudo, uma escola para todos não é uma mera escolha entre tantas outras que podemos ir fazendo: a própria natureza desta instituição, a coerência dos seus princípios, empurra-a inevitavelmente para um espaço que não exclua ninguém. Se assim não fosse, já não seria uma escola, mas sim um qualquer outro espaço onde se poderia falar de um conjunto de coisas, aprender sobre elas, etc.

A escola tornou-se, hoje, na República, mais do que nunca, numa “coisa pública” e, assim, imbuída da preocupação de não se desenvencilhar de ninguém, por isso mesmo, pertença de todos.

Desta forma, o facto de pertencer a todos, faz com que a escola não seja propriedade de ninguém. Ninguém deverá impor-lhe as suas regras, leis, conceitos, o que pode ou não discutir, as suas convicções ou mesmo os hábitos da sua comunidade.

Embora reconheça a legitimidade das comunidades e a sua importância, estas não constituem a sociedade. Por isso mesmo, dentro de uma escola ninguém se deverá sentir excluído, devido à sua identidade. É isto, ou seja, esta lei comum, que constitui realmente a sociedade. Sendo, então, um bem público, a escola é um lugar, por excelência, acolhedor e promotor da diversidade.

Penso, no entanto, que estamos a assistir nos últimos tempos a uma fortíssima movimentação para tornar a escola pública num espaço tendencialmente comunitário,* o que, a acontecer, levaria, a breve prazo e no limite, a que cada grupo tivesse a sua própria escola. Mas a escola pública não é isso: não é a cada um a sua escola.

Poderia até que, esta forma de organizar um outro espaço educativo (?), promovesse e desse maior coerência a algumas aprendizagens, mas iludiria aquilo que é fundamental, que é, e entendamo-nos, permitir que os meninos e meninas oriundos de diferentes comunidades, religiões, ideologias, raças, orientação sexual, possam aprender a viver juntas num mesmo espaço, não se lançando umas contra as outras e, melhor do que isso, sem que cada um tente impor ao outro a sua forma de viver e de olhar o mundo.

Por fim, e para ajudar o leitor a reflectir, deixo um pequeno excerto de “O Principezinho”:

– Andas à procura de galinhas? – diz a raposa.
– Não... Ando à procura de amigos. O que é que "cativar" quer dizer?
– Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
– Laços?
– Sim, laços – disse a raposa – Eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo e eu serei para ti, única no mundo...
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* Philippe Meirieu diz, a este propósito, que «uma sala de aula não é uma comunidade, uma classe não pode ser uma comunidade, tem obrigação de o não ser. Não é uma comunidade porque numa classe as pessoas não se escolheram. Não pode ser uma comunidade porque as pessoas reúnem-se numa classe de modo arbitrário, por um tempo determinado, sem terem sido consultadas sobre os seus pontos de vista, sobre o tipo de relacionamento que têm e onde estão inseridas, e sem terem escolhido o tipo de actividades que lhes irão ser impostas, contrariamente ao clube desportivo ou à sociedade musical.
O que reúne as pessoas numa sociedade, não podem, portanto, ser laços emocionais, o que não quer dizer que estes laços não existam, pois existirão sempre. Mas o que constitui o cimento de uma sociedade, por comparação com a comunidade, é que as pessoas estão lá sem que precisem necessariamente de gostarem umas das outras, sem gostar necessariamente das mesmas coisas e, mesmo assim, trabalharem juntas, respeitarem-se mutuamente, de construir coisas e saírem mais ricas do que quando entraram» [LER TEXTO COMPLETO >>>]

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Burocracia versus Autonomia dos Agrupamentos de Escolas e a balcanização do 1º Ciclo

Daniel Lousada

Quando vem à conversa o excesso de burocracia nas escolas, vem por arrasto, muitas vezes, a falta de autonomia dos seus Agrupamentos! Mas não vejo como seja possível esta ligação. Estes, tirando até ver o poder de contratar professores, por sua conta [e risco *], em tudo mais têm tido toda a autonomia do mundo!

Pelo que me é dado perceber, na comunicação do Ministério da Educação com as Direcções dos Agrupamentos, deve passar-se algo assim: As regras são estas..., mas como não há regra sem excepção, escolham as excepções que entenderem, para reforço da vossa autonomia! Burocrática, já se vê.

Veja-se, a título de exemplo, o 1º Ciclo obrigado a adoptar um horário por disciplinas, com o respectivo "livro de sumários" dos outros graus de ensino! Com uma medida aparentemente inofensiva, a pretexto da "coerência do sistema", da sua "uniformidade administrativa", leva-se os professores deste nível de ensino, a pegar num currículo que aposta na interdisciplinaridade e a parti-lo às fatias. Assiste-se, então, a algo, no mínimo caricato: o Ministério da Educação com medidas de flexibilização do currículo, com as quais pretende, supostamente, facilitar a organização de projectos interdisciplinares nos 2º e 3º ciclos; e os Agrupamentos de Escolas, com toda a sua “autonomia”, a levarem o 1º Ciclo [onde, por força do seu regime de monodocência, a interdisciplinaridade é vista como natural], a caminhar no sentido contrário, num processo incompreensível de “balcanização do currículo” [veja-se caixa "Não dei a aula em chinês"]. Desenganem-se, portanto, aqueles que pensam que a burocracia que mais "magoa", vem do Ministério da Educação!
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Philippe Meirieu e  Abedennour  Bidar «defendem que a liberdade pedagógica e a coerência dos sistema é essencial, mas a coerência do sistema não pode continuar a sobrepor-se à liberdade pedagógica», apelando no sentido de que «os professores sejam considerados como actores e autores responsáveis e não como meros executantes de processos estandardizados».
** 
Como diz António Nóvoa, «o controlo regimental da vida das pessoas e das instituições, sempre em nome da flexibilidade e da simplificação, é a obscenidade maior das sociedades contemporâneas***. A burocracia quando não é colocada ao serviço das pessoas [dos alunos e seus professores, neste caso] é apenas instrumento de manifestação de poder. E é de pequenos gestos burocráticos, que os pequenos poderes, com uma falta de cultura pedagógica que até dói, se afirmam!

O que mais massacra é o tempo gasto à volta do documento inútil, criado pelos agrupamentos, que não têm outro objectivo que não seja o de controlo administrativo. Como Refere Ph. Perrenoud, «perguntar-se a cada dia "para que serve?" é bem mais cansativo do que trabalhar duas horas a mais, dominando o que se faz, e sabendo que isso é útil e ao mesmo tempo reconhecido».****

Precisamos urgentemente de parar, e de inventar o dia de greve à burocracia para, longe dela, descobrirmos o que dela nos faz falta. Precisamos de professores(as) corajosos(as), capazes de confrontar os pequenos poderes, que não sabem fazer mais do que sabotar o seu trabalho; precisamos de virar os holofotes para a sua incompetência, no espaço público, se necessário. 

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* "Risco" surge aqui entre parêntesis porque, a manter-se a "tradição", não haverá risco algum: apenas poder discricionário sem controlo. 

** Citados por Luís Goucha, "Crescer em humanidade. Quando o pedagogo se encontra com o filósofo: notas de uma entrevista" [LER MAIS>>>]

*** António Nóvoa. "Padagogia: a terceira margem do rio", p. 39 [LER MAIS>>>]

**** Philippe Perrenoud, Escola de A a Z, Artmed, Porto Alegre, pp. 41-43

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A experiência de Summerhill: Esperar que surja o desejo de aprender. Um beco sem saída

Philippe Meirieu
Phillipe Meirieu
n "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés. Paris, ESF Éditeur
Versão portuguesa de Daniel Lousada
[também disponível em PDF >>>]

Embora a Escola de Summerhill tenha sido criada em 1921, o trabalho ali desenvolvido só foi conhecido fora das fronteiras de Inglaterra na década de 1960. O meio peda­gógico da “Escola Activa”, os pedagogos que se interessa­vam pelo movimento libertário e pela difusão das teorias psicanalíticas, em matéria educativa, conheciam a existên­cia da escola sediada em Sulfolk, mas a maioria desconhe­cia as suas práticas e apenas se referiam a ela de uma forma muito genérica. 

Em 1966, apareceu uma pequena obra do fundador de Summerhill, Alexander Neill, que ilustra o que estava em jogo naquele empreendimento: o objectivo consistia em permitir que as crianças aprendessem e se desenvolves­sem livremente, através da prática colectiva de autoges­tão. Com efeito, Neill considerava que as obrigações esco­lares e sociais tradicionais eram contraproducentes: ao impor às crianças aquisições mecânicas e superficiais, afas­tadas das suas preocupações, fomentava-se a hipocri­sia e a mentira; favorecia-se o caminho individualista e o sucesso a qualquer preço, em prejuízo das aprendizagens profundas, assentes na investigação e na cooperação. 

Tudo isto fazia eco das teorias bem conhecidas, então, da “Escola Activa”, na linha seguida pela Escola de Roches. Era apenas um pouco mais radical, pois Neill não vacilava em arrasar os tabus educativos em matéria de sexuali­dade, tabus que, em seu entender, apenas dissimulam frustrações e agressividade inúteis. 

Neill alcança o seu momento de glória em 1970, quando não se havia ainda esfumado a explosão libertária de 1968: a publicação de “Libres enfants de Summerhill” [cri­anças li­vres de Summerhill] tem o efeito de uma bomba. Numa série de capítulos ilustrados, com muito humor, Neill des­creve a sua escola. É mais do que evidente que o autor não se sente confortável com o estilo dos tratados de pedago­gia e, de facto, nem se dá ao trabalho de fazer uma expo­sição sistemática dos seus princípios e práticas. Mas o qua­dro é sugestivo quanto baste, para que muitos vejam nele uma proposta alternativa original. Madeleine Chapsal, es­critora e jornalista, co-fundadora do L’Express, escreve en­tão nesse semanário, que não é, no entanto, nada afecto às especulações libertárias: «Porque é tão rara uma experi­ên­cia tão positiva, tão necessária numa época em que todo o sistema de ensino, de um ponto ao outro da cadeia, do jardim-de-infância à universidade, mostra o seu fra­casso

Como vemos a retórica indestrutível do “Fracasso do sis­tema” já estava presente. E vemos sobretudo, que Sum­merhill – sem dúvida devido à natureza simpática e ao mesmo tempo desarticulada da proposta – apresenta-se como uma alternativa institucional a ter em conta, uma alterna­tiva em que o educador resolve o problema do desejo de aprender da maneira mais simples do mundo: esperando com tranquilidade, sem intervir, que o desejo se manifeste de forma espontânea… 

Na realidade, Neill assenta as suas propostas numa profis­são de fé, ingenuamente rousseauniana: 
«A minha mulher e eu decidimos abrir uma escola, na qual daríamos aos alunos a liberdade de expressão. Para fazê-lo, devíamos renunciar a toda a disciplina, a toda a direc­ção, a todas as sugestões, a toda a moral precon­cebida, a toda a educação religiosa fosse ela qual fosse. Alguns dis­seram que eramos muito corajosos, mas, na verdade, não precisámos de coragem. Do que preci­sá­mos, já tínha­mos: a crença no facto de que a cri­ança não é má, mas boa».[1] 

Neste sentido, Neil estava convencido de que «o excesso de agressividade de que falamos, nas crianças oprimidas, não é senão um forte protesto contra o ódio que lhes é di­rigido», e crê que insistir, como fazem os psicólogos e edu­cadores, na necessidade de exercer as inevitáveis pressões, para controlar esta agressividade, é um erro: «Não é possí­vel treinar um cão de caça quando este está preso a cade­ado. Como tão pouco, em psicologia humana, se pode enunciar teorias dogmáticas sobre uma humanidade prisi­oneira do seu ódio desde há várias gerações».[2] 

Apoiado nas suas convicções, Neill deixa que as crianças que recebe na sua escola sigam as aprendizagens que lhes são propostas, em total liberdade. Alguns – que de acordo com Neill estão deformados pelo “ensino tradicional” – ne­gam-se a assistir às aulas. Ninguém os recrimina nem obriga a apresentar-se. Ninguém tenta, tão pouco, con­vencê-los da necessidade ou interesse de aprender o que quer que seja. Um caso extremo, é uma criança que não participa de nenhuma actividade, durante vários anos, e abandona Summerhill, aos 17 anos, sem saber ler! Mas a maioria deles, uma vez que vivem livres num ambiente sem obrigações, voltam-se naturalmente para a leitura, a ma­temática, a carpintaria e a geografia. E então entre­gam-se a elas por inteiro, sem nenhum limite:
«Tom, de 8 anos, estava sempre a bater-me à porta para perguntar-me: “Diz-me, que posso fazer hoje?”. Não que­ria dizer-lhe nada. Seis meses mais tarde, se alguém pro­curava o Tom, podia encontrá-lo no seu quarto rodeado de papéis. Passava horas a desenhar mapas geográficos. Um dia, um professor de uma faculdade de Viena visitou Sum­merhill. Conheceu o Tom e fez-lhe um monte de per­gun­tas: “Interroguei o seu pequeno Tom sobre geografia e ele falou-me de lugares que me eram desconhecidos por completo”».

A partir do momento em que uma criança manifesta o de­sejo de aprender, seja o que for, Neill não só deixa que mergulhe no que elegeu – com a consequência possível de não dormir o suficiente – como também lhe faculta toda a ajuda técnica possível, em especial através de lições indi­viduais intensivas. Tanto assim que encontramos, nos seus textos, junto a violentos ataques à “Escola tradicional”, uma crítica virulenta aos métodos pedagógicos que procu­ram dourar a pílula, para que as crianças a consigam dige­rir melhor.
 

Além disso, denúncia o uso do jogo e de todos os artifícios que têm como objectivo tornar os saberes atractivos, de forma artificial, para os quais, segundo a sua opinião, há que esperar que a criança os acolha espontaneamente. E para os quais – de forma milagrosa – quase todas as crian­ças de Summerhill, se voltam espontaneamente! 

Fica por explicar, mesmo que minimamente, esse milagre, es­pecialmente se não nos resignarmos a deixar que a ale­a­toriedade de situações individuais oriente a aprendiza­gem. Bruno Bettelheim, que estudou exaustivamente o “caso Summerhill” e a quem não se pode acusar de hosti­lidade relativamente a Neill, levanta a ponta do véu: afirma que «Summerhill é uma boa escola», mas reco­nhece, no entanto, que isso não se deve à qualidade da sua pedagogia. Se a maior parte das crianças acaba por querer aprender, é, simplesmente – diz Bettelheim –, por­que «Neill é um tipo formidável e porque faríamos qual­quer coisa para obter a sua estima e afecto».[3] Com efeito, se o compreendemos bem, Neill não praticava a absten­ção educativa mais do que para recuperar em sedução o que havia abandonado em exigência! Mantinha, assim, a dependência que procurava abolir, permitindo ao mesmo tempo a intervenção do carácter fundamentalmente in­justo e inevitavelmente selectivo dos fenómenos de iden­tificação. 

Portanto, é impossível limitarmo-nos a esperar que o de­sejo espontâneo de aprender apareça, pois corremos o risco de virar as costas à pedagogia e ao seu projecto fun­dador: transmitir a todas as crianças os saberes necessá­rios ao seu desenvolvimento social e cidadão. E no en­tanto, mesmo quando Summerhill parece algo que ficou num passado distante, esta tentação reaparece, de vez em quando. Ela é até, implicitamente, um dos lugares mais co­muns da vulgata pedagógica: a criança é, por natureza, um ser curioso, desperto a tudo, desejoso de aprender desde que nasce, que pede apenas que se lhe dê acesso aos sa­beres mais elaborados e, por isso mesmo, não recusa ne­nhum esforço…, pelo menos enquanto os pais não tenham matado esse desejo, por falta de jeito, ou enquanto a insti­tuição escolar, com as suas pressões, não acabe por con­trariar esta disposição espontânea![4] Em "Nascido para aprender", título de uma obra de Hélène Trocmé-Fabre, que se baseia nas "ciências cognitivas", a criança estaria, de certa forma, destinada a desenvolver os conhecimentos necessários à sua educação, de acordo com uma dinâmica que só teríamos de acompanhar, de forma benevolente. 

Mas, não estaremos a confundir aqui o “desejo de Apren­der” com o “desejo de saber”? Ninguém duvida de que as crianças desejam saber: querem saber quais são as suas origens e como obter satisfação dos adultos que a ro­deiam. Querem saber como obter boas notas e passar no exame. Querem saber como participar num debate com amigos ou como utilizar um dispositivo electrónico. Mas prefeririam não ter de aprender tudo isso. Em primeiro lu­gar, porque a aprendizagem sempre se nos apresenta como uma perda de tempo, sobretudo quando alguém pode efectuar a tarefa por nós. Depois, porque todo o pro­gresso técnico consiste, precisamente, em permitir-nos fa­zer, em cada dia, menos esforço, para obter o resultado pre­tendido, sem ter de compreender como, nem saber o que se passa “debaixo do capô”. 

É isto, precisamente, que está em jogo na pedagogia es­colar, o ponto em que se produz a ruptura com o “desejo natural da criança”: na sala de aula, trata-se de passar do “desejo de saber” – desejo de eficácia no curto prazo, gui­ado pela preocupação de obter satisfação com o menor esforço possível – ao “desejo de aprender”, que exige dar-se tempo para explorar o desconhecido, que choca com a estranheza inevitável dos saberes novos, que aceita o es­forço sem a perspectiva de remuneração imediata…, a fim de aceder ao prazer – nunca de todo garantido quando nos lançamos nesta empresa – que procura a inteligibili­dade dos seres e das coisas. Trata-se, pois, de adiar a “ló­gica produtiva[5] para se confrontar com o gozo de pensar. E isto não tem nada de natural; pelo contrário, fazem falta conteúdos exigentes, situações estruturadas,… e a mediação de um professor que, pode dizer-se, faz falta à escola.



[1] A afirmação da “bondade natural” do homem” de Rousseau só é válida no “estado natural”, e esse “estado natural” não é uma etapa histórica determinada, mas uma hipótese filosófica que representa, de algum modo “o homem, abstracção feita de influências sociais nefastas que perturbam o seu desenvolvimento”. Assim concebida, a “bondade natural do homem” é uma espécie de “marca original” [independente do todo o “princípio” histórico] e inseparável, para Rousseau, do princípio de “perfectibilidade”, que podem alcançar os seres humanos mediante a educação. Rousseau não considera, com efeito, que “a criança seja boa”, mas que tem em si essa potencialidade e que graças à educação emancipadora, é possível, portanto, fazê-la aceder ao estado de sujeito, e permitir-lhe construir uma sociedade democrática no âmbito do contracto social.

[2] Na realidade, Neill recusa as análises de Freud sobre a agressividade e prefere, pelo contrário, as de Wilhelm Reich sobre o carácter decididamente positivo da “pulsão de vida”.

[3] Mais ainda: «As mudanças que Neill produz nos seus alunos, ao estarem assentes na identificação, só têm êxito com aqueles que podem identificar-se com ele. E muitos podem fazê-lo simplesmente, porque ele é o homem mais extraordinário que conhecem. Mas se um homem de menos estatura tentar aplicar a sua ingénua filosofia…  será o caos, porque o conceito que Neill tem de humanidade é incorrecto, mesmo quando esse conceito o inspira até ao ponto de fazê-lo alcançar coisas extraordinárias» [Bettelheim e outros, 1972: 90-91].

[4] Veja-se Menès (2012). A autora explica que, enquanto sujeito, a criança é movida por desejos, entre eles, o desejo de aprender. Os adultos podem alimentar esse desejo mediante um diálogo que inspire confiança ou facilitando a sua relação com o ambiente. Também podem “anestesiá-lo” não respondendo nunca a esse desejo ou bem, pelo contrário, esgotá-lo “sobrestimando-o” permanentemente.

[5] Demonstrei, em 2010, até que ponto a "lógica produtiva", dominante no campo económico e social, onde é legítima, sempre ameaçou a sala de aula e colocou muitos alunos em risco de serem marginalizados da aprendizagem [o que favorece apenas aqueles que são mais dedicados e que já conhecem a satisfação da aprendizagem]. Esta é a principal razão pela qual a escola não pode imitar "a oficina".