segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Pedagogo é aquele que faz sair de casa

Jan Masschelein
Excertos de "Fazer escola: a voz e a via do professor", in Larrosa e outros, Elogio do Professor, Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2021

O conceito de pedagogo é formado por duas palavras gregas: pais [criança] e ago, que significa conduzir [con-ducere] ou colocar em movimento. Portanto, o pedagogo acompanha a criança, conduz a criança, coloca-a em movimento [é por isso que em francês se diz que o professor dá um “curso” (com significado de aula), e não profere um “discurso”, pois o “dis” é um elemento privativo que indica aqui o cessar do movimento do “curso”, ao passo que o “curso” aponta a suspensão do discurso, o colocar em movimento]. E isso deve ser entendido primeiramente como um deslocamento – e, portanto, como o acompanhar em um caminho, uma via, e a mais importante era a via em direcção à escola. Tratava-se, tanto para o pedagogo quanto para a criança, de deixar a casa (oikos) para ir para os locais de exercício (…) e de estudo. (…) Partindo dessa imagem, poder-se-ia dizer que o pedagogo faz sair de casa, mas de um modo que adoça a saída e, portanto, a exposição para a criança. (…)

É por essa razão que o pedagogo está crucialmente ligado a uma viagem para fora, é a via do professor que compartilha a via da criança. E essa viagem, segundo Michel Serres, consiste em deixar o lugar do nascimento [do latin nasci, que quer dizer “nascer”, e que está ligado à noção de natureza], isto é, deixar o ventre da mãe, mas também a sombra projectada pela casa do pai e pela paisagem da criança. (…) E Serres acrescenta que durante essa passagem muitas coisas mudam. O escravo se transforma de algum modo em professor, e a via transforma-se em escola (…).

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"RECOMEÇAR"

Hoje, por diversas razões, apeteceu-me retomar as minhas “escritas” que tinha interrompido por algum cansaço de cacofonias e a necessidade de controlar a impulsividade que sentia para comentar os “excessos” da (des)informação…

Tive a sorte de me “cruzar” com a excelente crónica de Tolentino Mendonça que a amiga Rosário Caldeira tão bem seleccionou e publicou na sua página de fa­ce­book. Repeti o título que é tão amplo e permito-me citar este trecho:

Há um dom naquelas estações em que a vida se re­solve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habil­mente coincide.”

E é nessa harmonia que me quero inspirar para hoje re­cordar as mulheres “sem fotos” que preencheram a vida que corria na minha cidade. Lembro alguns ros­tos, alguns nomes mas sobretudo vidas de trabalho, cansaço e pouco rendimento mas que aliviavam as de alguns citadinos.

Neste cortejo de rostos, recordo as “lavadeiras”! que vi­nham de Alfaião, com os burros carregados de roupa la­vada com restos de cinzas e sabão feito, e que em casa bran­queavam ao sol. Um ritual de do­mingo, na casa da minha mãe, era receber a lava­deira, contar as peças da semana anterior e fazer a listagem das peças para lava­gem na se­mana se­guinte. Essa tarefa era minha desde que comecei a saber escrever. Lembro depois que a lava­deira almo­çava connosco, fruto daquela afabilidade apa­nágio da mi­nha mãe.

Recordo as leiteiras que bem cedo saiam dos seus lugarejos, ainda longe da cidade, e distribuíam o leite que inva­riavelmente era fervido antes de ser servido ao pe­queno-almoço de quem tinha o privilégio de o poder tomar com o pão fresco, que as padeiras colocavam, enquanto nascia o dia, nos sacos deixados na porta de entrada de alguns mais favorecidos.

Recordo as mulheres que carregavam as estevas que acen­diam os nossos fogões e as nossas braseiras, e com as quais se ou­sava discutir o preço do feixe das urzes; as mulheres, que iam ao mercado manhã cedo, esco­lhiam os dias da chegada do peixe mais fresco, trans­por­tavam na cabeça sacos carregados e que, com an­dares “acrobatas”, fizeram os seus estragos nas “pos­turas” que se materializaram nas artroses precoces.

Era um tempo de percursos feitos a pé ou de burro, sem “luzes”, só de alguma esperança, com neve, frio, chuva ou sol…por caminhos enviesados, em madru­gadas mal acor­dadas e regressos a casa com bolsos de dinheiros esmo­lados, porque todos discutiam pre­ços.

Não sei se se chamavam Marias, Aidas, Antónias ou Gui­lher­minas… Sei que eram mulheres de força, algumas viúvas de homens vivos, interessadas na educação dos seus fi­lhos e que foram envelhecendo em silên­cios nunca parti­lhados.

Não! Nesse tempo não era nada bom!
Hoje quero celebrar essas mulheres silenciosas, sem voz, só presentes quando se mostra um Portugal de miséria, e não deixar que as traições da memória ve­nham dizer: “nesse tempo é que era bom”!


Lembro, a propósito, uma homenagem feita recente­mente às carquejeiras que “invadiam a cidade do Porto”, até há 70 anos, e que um grupo de mulheres de boa von­tade teve o ensejo de lhe prestar home­nagem.

Quero voltar a minha Bragança, percorrer ruas e pra­ças e verificar se, em algum tempo e em algum lugar, vejo essas gloriosas anónimas serem relembradas com a força e o respeito que merecem. Estou farta de títulos e de conde­corações que hoje “te dou a ti” para tu, mais tarde, “dares a mim” ou a um dos meus…

domingo, 23 de outubro de 2022

Educação escolar: Entre a civilização e a barbárie

[TAMBÉM DISPONÍVEL EM PDF>>>]

O futuro há-de brotar da escola. Tudo que for edificado sobre outra base ficará construído sobre areia. Mas, por desgraça, a escola pode tanto servir de cimento para os baluartes da tirania quanto para os castelos da liberdade. Deste ponto de partida podemos arrancar tanto a barbárie quanto a civilização” - F. FERRER i GUÀRDIA[1].

Situamos Francisco Ferrer no seu tempo e recordamos que, nesse tempo, fazia-se ainda a distinção entre educação e instrução. Imaginamos então Ferrer como alguém à frente do seu tempo, a recusar o acto de instruir fora do acto maior de educar. Porque a escola que tem a ilusão de que apenas instrui e deixa a responsabilidade de educar nas mãos da “vida privada”, arrisca-se, sem disso se dar conta, a educar para a barbárie. E no entanto, escreve-se por aí, com tanta insistência, em tantos “sítios” dedicados à educação e ensino, que «a família deve educar para que a escola possa ensinar!». Talvez que esta insistência não seja mais que um desabafo de quem não vê reconhecido o seu trabalho e reivindica o apoio que não tem! Talvez! Mas mesmo assim não conseguimos evitar a provocação, numa pergunta: E se a família não educa, a escola desiste e não ensina?
 
A escola educa e ao educar instrui. A escola instrui e ao instruir educa. Mas para que possa educar ao instruir, precisa conhecer o sentido educativo da instrução que oferece. E aqui sobressai a importância de uma abordagem educativa por competências[2]
.

Podemos, por exemplo, ensinar história, passando apenas às crianças e jovens uma colecção de factos. Ao ensinar desta forma, conseguimos, talvez, pessoas instruídas! Mas só educamos se, no decurso do processo, as ajudarmos a ser melhores pessoas. Educamos, então, não em função de um futuro que não controlamos, depois de passado o tempo de vida na escola [porque não há como preparar alguém para vida que terá num futuro a 20 anos de distância], mas para o dia-a-dia vivido na sala de aula, na forma como convocamos a história [e outros saberes], na procura da compreensão do caminho que temos caminhado e dos caminhos que temos para caminhar. A ideia de uma “educação para a vida” não pode deixar de estar presente, obviamente. Mas se não conseguirmos, pela nossa acção, que as crianças e jovens que nos são confiados sejam boas pessoas hoje, não sei se o conseguirão ser no futuro! Daqui decorre «a proposta de que os conteúdos de ensino deveriam ser definidos em relação a práticas sociais cruciais para a vida dos cidadãos, mais do que num retomar de conhecimentos pré-definidos»
[3].

Valores e atitudes não são conteúdos de um programa que se passem “de cátedra”, através de formas tradicionais de ensino: são competências sociais que decorrem dos modelos de organização educativa em que se inscrevem. Mas a “gramática da escola” [aquela da tradição, que separa a educação da instrução] não se cansa de nos empurrar para o trivial, o “palpável” [a colecção de factos referidos atrás] que, pela sua “clareza”, nos dispensa de pensar. Então, torna-se necessário um olhar moderno sobre as competências sociais, para que, ao procurar integrá-las no currículo escolar, estas possam ser aprendidas e mantidas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas apenas em discursos, num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da sua avaliação.

Do conjunto de saberes que a escola oferece, Philippe Perrenoud fala dos saberes como recursos [recursos “internos”, nas suas palavras]: os saberes que, uma vez guardados, nos ajudam a viver; aqueles saberes «que o indivíduo tem dentro de si, que, de uma certa maneira, estão registados na memória, incluindo a “memória do corpo”»
[4]. Saberes que orientam os nossos gestos, na relação que temos com o mundo, diríamos de um modo automático ou quase, que não precisam de grandes reflexões ou de serem reflectidos de todo, porque já foram reflectidos por nós, ou por interposta pessoa, no decurso do processo que os incorporou em nós. No entanto, sabemos, com Le Boterf, que «a competência não é um estado, e sim um processo»[5], e que a desactualização do saber que a sustenta faz parte, inevitavelmente, da sua natureza. Diz-se, então, a propósito, que as competências não são nem objectivos nem transversaisobjectivos foram os conhecimentos adquiridos, desejavelmente transversais, que as sustentam.
 
Daqui a importância de revisitar, ou (re)descobrir, os “saberes” que levam à abordagem de um problema desta maneira, daquela ou de outra qualquer, ou fazem agir por impulso[6].

_________________

[1] Ferrer Y Guàrdia. Escuela Moderna: páginas para la história, Barcelona, Publicaciones de la Escuela Moderna, 1912: p. 22.
[2] Há formas e formas de “desenhar” um currículo por competências, mas não há forma de o desenhar se o conhecimento estiver ausente. Não compreendemos, portanto, esta insistência na oposição conhecimento/competência, que não consegue desligar-se do conceito que nos chega da empresa, e que não é de todo o conceito a trabalhar na escola. Porque «o operador competente é aquele que é capaz de mobilizar e de colocar em prática, de modo eficaz, as diferentes funções de um sistema no qual intervêm recursos tão diversos quanto as operações de raciocínio, os conhecimentos, as activações da memória, as avaliações, as capacidades relacionais ou os esquemas comportamentais. Essa alquimia continua sendo uma terra amplamente incógnita» (Le Boterf, De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994:17).
[3] Olivier Rey in Notas críticas ao livro de Philippe Perrenoud “A escola deve preparar para a vida” [LER MAIS>>>].
[4] Philippe Perrenoud. “Desenvolver competências ou ensinar Saberes? A escola que prepara para a vida”. Porto Alegre, Penso Editora Lda, 2013: p. 46.
[5] Le Boterf, G. De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994: p. 17. 
[6] Por exemplo, revisitar e desconstruir saberes que induzem certos tipos de comporta­mento, alguns saídos de uma certa cultura tradicional popular: “Olho por olho, dente por dente”, “Só quem é duro se dá ao respeito”, …

sábado, 22 de outubro de 2022

A liberdade de organizar escolas diferentes

Ter uma escola para todos [não falamos da obrigatoriedade escolar legislada em 1835], sendo um objectivo do nosso país, é-o apenas há algumas dezenas de anos, não sendo, ainda, uma ideia que percorra a totalidade dos países do mundo. Sabemo-lo todos.

Contudo, uma escola para todos não é uma mera escolha entre tantas outras que podemos ir fazendo: a própria natureza desta instituição, a coerência dos seus princípios, empurra-a inevitavelmente para um espaço que não exclua ninguém. Se assim não fosse, já não seria uma escola, mas sim um qualquer outro espaço onde se poderia falar de um conjunto de coisas, aprender sobre elas, etc.

A escola tornou-se, hoje, na República, mais do que nunca, numa “coisa pública” e, assim, imbuída da preocupação de não se desenvencilhar de ninguém, por isso mesmo, pertença de todos.

Desta forma, o facto de pertencer a todos, faz com que a escola não seja propriedade de ninguém. Ninguém deverá impor-lhe as suas regras, leis, conceitos, o que pode ou não discutir, as suas convicções ou mesmo os hábitos da sua comunidade.

Embora reconheça a legitimidade das comunidades e a sua importância, estas não constituem a sociedade. Por isso mesmo, dentro de uma escola ninguém se deverá sentir excluído, devido à sua identidade. É isto, ou seja, esta lei comum, que constitui realmente a sociedade. Sendo, então, um bem público, a escola é um lugar, por excelência, acolhedor e promotor da diversidade.

Penso, no entanto, que estamos a assistir nos últimos tempos a uma fortíssima movimentação para tornar a escola pública num espaço tendencialmente comunitário,* o que, a acontecer, levaria, a breve prazo e no limite, a que cada grupo tivesse a sua própria escola. Mas a escola pública não é isso: não é a cada um a sua escola.

Poderia até que, esta forma de organizar um outro espaço educativo (?), promovesse e desse maior coerência a algumas aprendizagens, mas iludiria aquilo que é fundamental, que é, e entendamo-nos, permitir que os meninos e meninas oriundos de diferentes comunidades, religiões, ideologias, raças, orientação sexual, possam aprender a viver juntas num mesmo espaço, não se lançando umas contra as outras e, melhor do que isso, sem que cada um tente impor ao outro a sua forma de viver e de olhar o mundo.

Por fim, e para ajudar o leitor a reflectir, deixo um pequeno excerto de “O Principezinho”:

– Andas à procura de galinhas? – diz a raposa.
– Não... Ando à procura de amigos. O que é que "cativar" quer dizer?
– Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
– Laços?
– Sim, laços – disse a raposa – Eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo e eu serei para ti, única no mundo...
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* Philippe Meirieu diz, a este propósito, que «uma sala de aula não é uma comunidade, uma classe não pode ser uma comunidade, tem obrigação de o não ser. Não é uma comunidade porque numa classe as pessoas não se escolheram. Não pode ser uma comunidade porque as pessoas reúnem-se numa classe de modo arbitrário, por um tempo determinado, sem terem sido consultadas sobre os seus pontos de vista, sobre o tipo de relacionamento que têm e onde estão inseridas, e sem terem escolhido o tipo de actividades que lhes irão ser impostas, contrariamente ao clube desportivo ou à sociedade musical.
O que reúne as pessoas numa sociedade, não podem, portanto, ser laços emocionais, o que não quer dizer que estes laços não existam, pois existirão sempre. Mas o que constitui o cimento de uma sociedade, por comparação com a comunidade, é que as pessoas estão lá sem que precisem necessariamente de gostarem umas das outras, sem gostar necessariamente das mesmas coisas e, mesmo assim, trabalharem juntas, respeitarem-se mutuamente, de construir coisas e saírem mais ricas do que quando entraram» [LER TEXTO COMPLETO >>>]

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Burocracia versus Autonomia dos Agrupamentos de Escolas e a balcanização do 1º Ciclo

Daniel Lousada

Quando vem à conversa o excesso de burocracia nas escolas, vem por arrasto, muitas vezes, a falta de autonomia dos seus Agrupamentos! Mas não vejo como seja possível esta ligação. Estes, tirando até ver o poder de contratar professores, por sua conta [e risco *], em tudo mais têm tido toda a autonomia do mundo!

Pelo que me é dado perceber, na comunicação do Ministério da Educação com as Direcções dos Agrupamentos, deve passar-se algo assim: As regras são estas..., mas como não há regra sem excepção, escolham as excepções que entenderem, para reforço da vossa autonomia! Burocrática, já se vê.

Veja-se, a título de exemplo, o 1º Ciclo obrigado a adoptar um horário por disciplinas, com o respectivo "livro de sumários" dos outros graus de ensino! Com uma medida aparentemente inofensiva, a pretexto da "coerência do sistema", da sua "uniformidade administrativa", leva-se os professores deste nível de ensino, a pegar num currículo que aposta na interdisciplinaridade e a parti-lo às fatias. Assiste-se, então, a algo, no mínimo caricato: o Ministério da Educação com medidas de flexibilização do currículo, com as quais pretende, supostamente, facilitar a organização de projectos interdisciplinares nos 2º e 3º ciclos; e os Agrupamentos de Escolas, com toda a sua “autonomia”, a levarem o 1º Ciclo [onde, por força do seu regime de monodocência, a interdisciplinaridade é vista como natural], a caminhar no sentido contrário, num processo incompreensível de “balcanização do currículo” [veja-se caixa "Não dei a aula em chinês"]. Desenganem-se, portanto, aqueles que pensam que a burocracia que mais "magoa", vem do Ministério da Educação!
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Philippe Meirieu e  Abedennour  Bidar «defendem que a liberdade pedagógica e a coerência dos sistema é essencial, mas a coerência do sistema não pode continuar a sobrepor-se à liberdade pedagógica», apelando no sentido de que «os professores sejam considerados como actores e autores responsáveis e não como meros executantes de processos estandardizados».
** 
Como diz António Nóvoa, «o controlo regimental da vida das pessoas e das instituições, sempre em nome da flexibilidade e da simplificação, é a obscenidade maior das sociedades contemporâneas***. A burocracia quando não é colocada ao serviço das pessoas [dos alunos e seus professores, neste caso] é apenas instrumento de manifestação de poder. E é de pequenos gestos burocráticos, que os pequenos poderes, com uma falta de cultura pedagógica que até dói, se afirmam!

O que mais massacra é o tempo gasto à volta do documento inútil, criado pelos agrupamentos, que não têm outro objectivo que não seja o de controlo administrativo. Como Refere Ph. Perrenoud, «perguntar-se a cada dia "para que serve?" é bem mais cansativo do que trabalhar duas horas a mais, dominando o que se faz, e sabendo que isso é útil e ao mesmo tempo reconhecido».****

Precisamos urgentemente de parar, e de inventar o dia de greve à burocracia para, longe dela, descobrirmos o que dela nos faz falta. Precisamos de professores(as) corajosos(as), capazes de confrontar os pequenos poderes, que não sabem fazer mais do que sabotar o seu trabalho; precisamos de virar os holofotes para a sua incompetência, no espaço público, se necessário. 

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* "Risco" surge aqui entre parêntesis porque, a manter-se a "tradição", não haverá risco algum: apenas poder discricionário sem controlo. 

** Citados por Luís Goucha, "Crescer em humanidade. Quando o pedagogo se encontra com o filósofo: notas de uma entrevista" [LER MAIS>>>]

*** António Nóvoa. "Padagogia: a terceira margem do rio", p. 39 [LER MAIS>>>]

**** Philippe Perrenoud, Escola de A a Z, Artmed, Porto Alegre, pp. 41-43

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A experiência de Summerhill: Esperar que surja o desejo de aprender. Um beco sem saída

Philippe Meirieu
Phillipe Meirieu
n "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés. Paris, ESF Éditeur
Versão portuguesa de Daniel Lousada
[também disponível em PDF >>>]

Embora a Escola de Summerhill tenha sido criada em 1921, o trabalho ali desenvolvido só foi conhecido fora das fronteiras de Inglaterra na década de 1960. O meio peda­gógico da “Escola Activa”, os pedagogos que se interessa­vam pelo movimento libertário e pela difusão das teorias psicanalíticas, em matéria educativa, conheciam a existên­cia da escola sediada em Sulfolk, mas a maioria desconhe­cia as suas práticas e apenas se referiam a ela de uma forma muito genérica. 

Em 1966, apareceu uma pequena obra do fundador de Summerhill, Alexander Neill, que ilustra o que estava em jogo naquele empreendimento: o objectivo consistia em permitir que as crianças aprendessem e se desenvolves­sem livremente, através da prática colectiva de autoges­tão. Com efeito, Neill considerava que as obrigações esco­lares e sociais tradicionais eram contraproducentes: ao impor às crianças aquisições mecânicas e superficiais, afas­tadas das suas preocupações, fomentava-se a hipocri­sia e a mentira; favorecia-se o caminho individualista e o sucesso a qualquer preço, em prejuízo das aprendizagens profundas, assentes na investigação e na cooperação. 

Tudo isto fazia eco das teorias bem conhecidas, então, da “Escola Activa”, na linha seguida pela Escola de Roches. Era apenas um pouco mais radical, pois Neill não vacilava em arrasar os tabus educativos em matéria de sexuali­dade, tabus que, em seu entender, apenas dissimulam frustrações e agressividade inúteis. 

Neill alcança o seu momento de glória em 1970, quando não se havia ainda esfumado a explosão libertária de 1968: a publicação de “Libres enfants de Summerhill” [cri­anças li­vres de Summerhill] tem o efeito de uma bomba. Numa série de capítulos ilustrados, com muito humor, Neill des­creve a sua escola. É mais do que evidente que o autor não se sente confortável com o estilo dos tratados de pedago­gia e, de facto, nem se dá ao trabalho de fazer uma expo­sição sistemática dos seus princípios e práticas. Mas o qua­dro é sugestivo quanto baste, para que muitos vejam nele uma proposta alternativa original. Madeleine Chapsal, es­critora e jornalista, co-fundadora do L’Express, escreve en­tão nesse semanário, que não é, no entanto, nada afecto às especulações libertárias: «Porque é tão rara uma experi­ên­cia tão positiva, tão necessária numa época em que todo o sistema de ensino, de um ponto ao outro da cadeia, do jardim-de-infância à universidade, mostra o seu fra­casso

Como vemos a retórica indestrutível do “Fracasso do sis­tema” já estava presente. E vemos sobretudo, que Sum­merhill – sem dúvida devido à natureza simpática e ao mesmo tempo desarticulada da proposta – apresenta-se como uma alternativa institucional a ter em conta, uma alterna­tiva em que o educador resolve o problema do desejo de aprender da maneira mais simples do mundo: esperando com tranquilidade, sem intervir, que o desejo se manifeste de forma espontânea… 

Na realidade, Neill assenta as suas propostas numa profis­são de fé, ingenuamente rousseauniana: 
«A minha mulher e eu decidimos abrir uma escola, na qual daríamos aos alunos a liberdade de expressão. Para fazê-lo, devíamos renunciar a toda a disciplina, a toda a direc­ção, a todas as sugestões, a toda a moral precon­cebida, a toda a educação religiosa fosse ela qual fosse. Alguns dis­seram que eramos muito corajosos, mas, na verdade, não precisámos de coragem. Do que preci­sá­mos, já tínha­mos: a crença no facto de que a cri­ança não é má, mas boa».[1] 

Neste sentido, Neil estava convencido de que «o excesso de agressividade de que falamos, nas crianças oprimidas, não é senão um forte protesto contra o ódio que lhes é di­rigido», e crê que insistir, como fazem os psicólogos e edu­cadores, na necessidade de exercer as inevitáveis pressões, para controlar esta agressividade, é um erro: «Não é possí­vel treinar um cão de caça quando este está preso a cade­ado. Como tão pouco, em psicologia humana, se pode enunciar teorias dogmáticas sobre uma humanidade prisi­oneira do seu ódio desde há várias gerações».[2] 

Apoiado nas suas convicções, Neill deixa que as crianças que recebe na sua escola sigam as aprendizagens que lhes são propostas, em total liberdade. Alguns – que de acordo com Neill estão deformados pelo “ensino tradicional” – ne­gam-se a assistir às aulas. Ninguém os recrimina nem obriga a apresentar-se. Ninguém tenta, tão pouco, con­vencê-los da necessidade ou interesse de aprender o que quer que seja. Um caso extremo, é uma criança que não participa de nenhuma actividade, durante vários anos, e abandona Summerhill, aos 17 anos, sem saber ler! Mas a maioria deles, uma vez que vivem livres num ambiente sem obrigações, voltam-se naturalmente para a leitura, a ma­temática, a carpintaria e a geografia. E então entre­gam-se a elas por inteiro, sem nenhum limite:
«Tom, de 8 anos, estava sempre a bater-me à porta para perguntar-me: “Diz-me, que posso fazer hoje?”. Não que­ria dizer-lhe nada. Seis meses mais tarde, se alguém pro­curava o Tom, podia encontrá-lo no seu quarto rodeado de papéis. Passava horas a desenhar mapas geográficos. Um dia, um professor de uma faculdade de Viena visitou Sum­merhill. Conheceu o Tom e fez-lhe um monte de per­gun­tas: “Interroguei o seu pequeno Tom sobre geografia e ele falou-me de lugares que me eram desconhecidos por completo”».

A partir do momento em que uma criança manifesta o de­sejo de aprender, seja o que for, Neill não só deixa que mergulhe no que elegeu – com a consequência possível de não dormir o suficiente – como também lhe faculta toda a ajuda técnica possível, em especial através de lições indi­viduais intensivas. Tanto assim que encontramos, nos seus textos, junto a violentos ataques à “Escola tradicional”, uma crítica virulenta aos métodos pedagógicos que procu­ram dourar a pílula, para que as crianças a consigam dige­rir melhor.
 

Além disso, denúncia o uso do jogo e de todos os artifícios que têm como objectivo tornar os saberes atractivos, de forma artificial, para os quais, segundo a sua opinião, há que esperar que a criança os acolha espontaneamente. E para os quais – de forma milagrosa – quase todas as crian­ças de Summerhill, se voltam espontaneamente! 

Fica por explicar, mesmo que minimamente, esse milagre, es­pecialmente se não nos resignarmos a deixar que a ale­a­toriedade de situações individuais oriente a aprendiza­gem. Bruno Bettelheim, que estudou exaustivamente o “caso Summerhill” e a quem não se pode acusar de hosti­lidade relativamente a Neill, levanta a ponta do véu: afirma que «Summerhill é uma boa escola», mas reco­nhece, no entanto, que isso não se deve à qualidade da sua pedagogia. Se a maior parte das crianças acaba por querer aprender, é, simplesmente – diz Bettelheim –, por­que «Neill é um tipo formidável e porque faríamos qual­quer coisa para obter a sua estima e afecto».[3] Com efeito, se o compreendemos bem, Neill não praticava a absten­ção educativa mais do que para recuperar em sedução o que havia abandonado em exigência! Mantinha, assim, a dependência que procurava abolir, permitindo ao mesmo tempo a intervenção do carácter fundamentalmente in­justo e inevitavelmente selectivo dos fenómenos de iden­tificação. 

Portanto, é impossível limitarmo-nos a esperar que o de­sejo espontâneo de aprender apareça, pois corremos o risco de virar as costas à pedagogia e ao seu projecto fun­dador: transmitir a todas as crianças os saberes necessá­rios ao seu desenvolvimento social e cidadão. E no en­tanto, mesmo quando Summerhill parece algo que ficou num passado distante, esta tentação reaparece, de vez em quando. Ela é até, implicitamente, um dos lugares mais co­muns da vulgata pedagógica: a criança é, por natureza, um ser curioso, desperto a tudo, desejoso de aprender desde que nasce, que pede apenas que se lhe dê acesso aos sa­beres mais elaborados e, por isso mesmo, não recusa ne­nhum esforço…, pelo menos enquanto os pais não tenham matado esse desejo, por falta de jeito, ou enquanto a insti­tuição escolar, com as suas pressões, não acabe por con­trariar esta disposição espontânea![4] Em "Nascido para aprender", título de uma obra de Hélène Trocmé-Fabre, que se baseia nas "ciências cognitivas", a criança estaria, de certa forma, destinada a desenvolver os conhecimentos necessários à sua educação, de acordo com uma dinâmica que só teríamos de acompanhar, de forma benevolente. 

Mas, não estaremos a confundir aqui o “desejo de Apren­der” com o “desejo de saber”? Ninguém duvida de que as crianças desejam saber: querem saber quais são as suas origens e como obter satisfação dos adultos que a ro­deiam. Querem saber como obter boas notas e passar no exame. Querem saber como participar num debate com amigos ou como utilizar um dispositivo electrónico. Mas prefeririam não ter de aprender tudo isso. Em primeiro lu­gar, porque a aprendizagem sempre se nos apresenta como uma perda de tempo, sobretudo quando alguém pode efectuar a tarefa por nós. Depois, porque todo o pro­gresso técnico consiste, precisamente, em permitir-nos fa­zer, em cada dia, menos esforço, para obter o resultado pre­tendido, sem ter de compreender como, nem saber o que se passa “debaixo do capô”. 

É isto, precisamente, que está em jogo na pedagogia es­colar, o ponto em que se produz a ruptura com o “desejo natural da criança”: na sala de aula, trata-se de passar do “desejo de saber” – desejo de eficácia no curto prazo, gui­ado pela preocupação de obter satisfação com o menor esforço possível – ao “desejo de aprender”, que exige dar-se tempo para explorar o desconhecido, que choca com a estranheza inevitável dos saberes novos, que aceita o es­forço sem a perspectiva de remuneração imediata…, a fim de aceder ao prazer – nunca de todo garantido quando nos lançamos nesta empresa – que procura a inteligibili­dade dos seres e das coisas. Trata-se, pois, de adiar a “ló­gica produtiva[5] para se confrontar com o gozo de pensar. E isto não tem nada de natural; pelo contrário, fazem falta conteúdos exigentes, situações estruturadas,… e a mediação de um professor que, pode dizer-se, faz falta à escola.



[1] A afirmação da “bondade natural” do homem” de Rousseau só é válida no “estado natural”, e esse “estado natural” não é uma etapa histórica determinada, mas uma hipótese filosófica que representa, de algum modo “o homem, abstracção feita de influências sociais nefastas que perturbam o seu desenvolvimento”. Assim concebida, a “bondade natural do homem” é uma espécie de “marca original” [independente do todo o “princípio” histórico] e inseparável, para Rousseau, do princípio de “perfectibilidade”, que podem alcançar os seres humanos mediante a educação. Rousseau não considera, com efeito, que “a criança seja boa”, mas que tem em si essa potencialidade e que graças à educação emancipadora, é possível, portanto, fazê-la aceder ao estado de sujeito, e permitir-lhe construir uma sociedade democrática no âmbito do contracto social.

[2] Na realidade, Neill recusa as análises de Freud sobre a agressividade e prefere, pelo contrário, as de Wilhelm Reich sobre o carácter decididamente positivo da “pulsão de vida”.

[3] Mais ainda: «As mudanças que Neill produz nos seus alunos, ao estarem assentes na identificação, só têm êxito com aqueles que podem identificar-se com ele. E muitos podem fazê-lo simplesmente, porque ele é o homem mais extraordinário que conhecem. Mas se um homem de menos estatura tentar aplicar a sua ingénua filosofia…  será o caos, porque o conceito que Neill tem de humanidade é incorrecto, mesmo quando esse conceito o inspira até ao ponto de fazê-lo alcançar coisas extraordinárias» [Bettelheim e outros, 1972: 90-91].

[4] Veja-se Menès (2012). A autora explica que, enquanto sujeito, a criança é movida por desejos, entre eles, o desejo de aprender. Os adultos podem alimentar esse desejo mediante um diálogo que inspire confiança ou facilitando a sua relação com o ambiente. Também podem “anestesiá-lo” não respondendo nunca a esse desejo ou bem, pelo contrário, esgotá-lo “sobrestimando-o” permanentemente.

[5] Demonstrei, em 2010, até que ponto a "lógica produtiva", dominante no campo económico e social, onde é legítima, sempre ameaçou a sala de aula e colocou muitos alunos em risco de serem marginalizados da aprendizagem [o que favorece apenas aqueles que são mais dedicados e que já conhecem a satisfação da aprendizagem]. Esta é a principal razão pela qual a escola não pode imitar "a oficina".

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

As "Actividades de Enriquecimento Curricular" e a "balcanização" do 1º Ciclo, agora com o apoio das autarquias

Daniel Lousada

No texto «Da "Escola a Tempo Inteiro"...», publicado neste blog [LER>>], escrevi: «pessoas que nos habituamos a respeitar chegam a ministros ou presidentes de câmara e parecem perder a capacidade de pensar».

Hoje, ao ler o que o jornal local “O Gaiense” diz da posição do presidente Eduardo Vitor Rodrigues, sobre as "AEC" – Actividades de Enriquecimento Curricular – fica-me a convicção de que, se não perdeu a capacidade de pensar, perdeu certamente a vontade de fazê-lo, em matéria de educação.

«Não me vou incomodar com esta questão»  diz Vitor Rodrigues* – para de seguida acusar os professores de tentativa de contaminação dos pais, «apenas por terem de trabalhar mais duas horas, um dia por semana». Para o presidente do município de Vila Nova de Gaia como, no passado, para a ministra da educação Maria de Lurdes Rodrigues, os professores são os maus da fita, ao recusarem ver a "bondade" das propostas do seu executivo! Aligeirando a conversa, apetece dizer que é um nome, "contaminado", que a antiga ministra da educação partilha com Eduardo Vitor Rodrigues, a produzir os seus efeitos, no modo como este olha os professores!

O problema das "AEC", o seu pecado original, está na motivação que as fez nascer: manter os alunos à guarda das escolas, enquanto os pais trabalham. As actividades que oferecem para manter as crianças ocupadas, até poderiam ser de "enriquecimento" mas, integradas num modelo em tudo semelhante ao modelo escolar [incapaz de desviar as crianças da escola], são mais do mesmo que a escola já oferece**. E num modelo assim, os miúdos não têm o espaço, de que tanto precisam, para "descansar da escola". Depois, dificulta a vida das famílias que não precisam das "AEC" [que poderão ser uma minoria, admito], com alternativas eventualmente mais amigas dos seus filhos e que, com o modo como a autarquia pretende flexibilizar os horários do 1º Ciclo, ficam simplesmente sem alternativa, e o que é facultativo torna-se obrigatório. 

Não sei se o presidente Eduardo Vitor Rodrigues pensou em tudo isto! Fazendo fé nas declarações que prestou a "O Gaiense", talvez não: «No meu modelo de escola pública – diz – o modelo de flexibilização das "AEC" é um modelo integrante e devia acontecer todos os dias e não apenas uma vez por semana». Se bem citado pel' "O Gaiense", o que propõe para o 1º Ciclo [de acordo com a interpretação que faço das suas palavras], é o aprofundamento da sua "balcanização", ao defender, por esta via, a transformação de um currículo integrado, num currículo partido às fatias [com um professor para cada fatia], contribuindo, assim, para a descaracterização de um Ciclo de Ensino, que não pára de ser descaracterizado, e que tem no regime de mono-docência a sua mais valia. 

Ao lado de tudo isto, temos as vidas adiadas de quem faz das "AEC" ofício e que, através dele, desejam legitimamente chegar à profissão que escolheram. Vitor Rodrigues recorda-os quando, de acordo com "O Gaiense", diz que «os professores desta área vêem, desta forma, uma oportunidade de poderem ser colocados nos quadros». Pena que tenha apenas para lhes oferecer um trabalho precário e mal pago. Estou certo, que estes professores apreciariam ver o seu presidente de câmara a procurar, com o ministério da educação, uma saída profissional condigna, que poderia passar, por exemplo, pela sua colocação como professores coadjuvantes dos professores [generalistas] do 1º Ciclo***, para apoiá-los de acordo com as áreas que dominam, e como professores de ligação das escolas com as diferentes instituições e associações ligadas à cultura, desporto, etc., de forma a acompanhá-las num trabalho com as crianças, que não lhes dê mais escola.

Ao olhar a escola do lado de fora da escola, talvez algo me escape e esteja a ser injusto, admito. Mas o que vejo, em toda esta questão, é um confronto de interesses, onde o que menos interessa são os interesses das crianças.

________________

* Maria de Lurdes Rodrigues, antiga ministra da educação, a propósito a falta de professores, quando interrogada sobre como chegamos aqui, diz: «Eu não sei porque é que chegámos aqui assim. Não sei! Não quero saber! Se quer a minha opinião, não quero saber! [VER>>]. Eduardo Vitor Rodrigues diz apenas que não se vai incomodar com a questão das "AEC".

** Expressões dramática e musical, educação física e expressão plástica, são áreas que fazem parte do currículo do 1º Ciclo do Ensino Básico.

*** O professor coadjuvante não substitui o professor titular, partilha com este responsabilidades para as quais está especialmente preparado. O professor de educação especial, por exemplo, [nem sempre] presente nas salas de aula, que têm crianças com necessidades educativas especiais, coopera com o professor titular, para que estas crianças possam usufruir do maior número de interacções possível, com os seus colegas, susceptíveis de potenciar o seu desenvolvimento.   

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Crescer em Humanidade. Quando o pedagogo se encontra com o filósofo: notas de uma entrevista

Luís Goucha
[Também disponível em PDF>>>]

Philippe Meirieu [pedagogo] e Abdennour Bidar [filósofo] encontram-se na escrita do livro “Crescer em Humanidade”. Na entrevista ao “Café Pédagogique” lamentam as controvérsias que cercam a pedagogia de ataques cegos, que não aproveitam a ninguém e confundem o espaço público em vez de o iluminar. Recusando esta lógica, decidiram aproveitar o tempo que os juntou na escrita deste livro, para reflectir sobre o que importa, hoje, na educação, cada um com a sua sensibilidade e referências de análise.

Faire société”* 
é o tema  que abre o livro. Sem se deter na observação das fracturas sociais e aumento do comunita­rismo**, debruça-se antes sobre as mudanças antropológicas que estamos a viver, questionando-as na busca de respostas: como é que as escolas são afectadas por estas mudanças e como enfrentá-las? Isto mostra-nos, de imediato, a ausência de uma direcção clara, de um “projecto educativo fundador”. Philippe Meirieu e Abden­nour Bidar defendem, então, que a educação e a escola só recuperarão a sua legitimidade social se exprimirem um projecto educativo de emancipação colectiva, que questione a procura cega da “eficiência escolar”, assente na ló­gica da “evi­dência”. 

Os autores reforçam a importância da conciliação entre autoridade social e emancipação assente no diálogo, tal como definido por Merleau-Ponty, que explica que "os pensamentos dos outros são os seus pensamentos, não sou eu que os formo, embora os agarre assim que nascem: a objecção que o interlocutor me faz, retira de mim pensamentos que eu pensava não possuir, de modo que, se eu lhe empresto pensamentos, ele, em troca, força-me a pensar."

Ao reverem Bachelard que, no final da "La Formation de l'esprit scientifique", considera que a escola não deveria ser modelada pela sociedade, mas aquela a contribuir para a construção desta, interrogam-se sobre a possibilidade de uma mudança radical de paradigma na educação. Tudo isto daria a possibilidade de nos mobilizarmos para construir, ao mesmo tempo, uma instituição e uma sociedade, com valores capazes de construir um futuro, no futuro, ultrapassando ajustamentos na distribuição de poderes, na organização de programas, etc. O que implicaria, neces­saria­mente, um debate profundo à volta da liberdade pedagógica.

Recusando a liberdade pedagógica como porta aberta a caprichos individuais, apela a que nos interroguemos sobre como esta pode contribuir para a unidade do sistema, e em que condições este sistema pode encorajar a liberdade pedagógica dos seus actores. Insistem na ideia de que questão da liberdade pedagógica e da coerência do sistema é essencial, mas que a coerência do sistema não pode continuar a sobrepor-se à liberdade pedagógica. Embora considerando que a crise de recrutamento de professores está, em larga medida, ligada à questão remuneratória, acreditam que o problema do reconhecimento dos professores não é apenas material, mas também simbólico. O apelo a fazer vai, assim, no sentido de que os professores sejam considerados como actores e autores responsáveis e não como meros executantes de processos estandardizados.

Uma “escola de tecelagem” é a proposta. Uma escola onde são tecidas ligações entre todos, se tecessem laços entre os humanos e o planeta, profundamente solidários. Uma escola construída em redor de um colectivo solidário à escala humana. Uma escola em que o “mínimo gesto” esteja em conformidade com os princípios educativos: acesso à liberdade, igualdade no direito de acesso de todas e todos à educação e à prática concreta e quotidiana da fraternidade, através da ajuda e mútua cooperação.

Demasiadas vezes, as nossas instituições são esquizofrénicas: exibem ambições e traem-nas alegremente nas suas práticas. Abdennour e Meirieu quiseram escapar a este defeito e perguntaram-se uma e outra vez: como encarnamos os nossos valores nas nossas práticas?

__________________

* Da capacidade ou vontade de cada pessoa, ou grupos de pessoas, considerar o outro, reconhecer a sua existência e compreendê-lo.
** Philippe Meirieu distingue sociedade de comunidade. O que caracteriza uma co­munidade são os afectos, as tradições, os laços; pertencer a uma comunidade re­sulta de uma escolha. Numa sociedade os afectos são importantes, obviamente, mas as pessoas não se escolhem entre si; o ci­mento que as mantém juntas são as re­gras.

sábado, 24 de setembro de 2022

Sou marcado pelo meus erros... E ainda bem!

Jean Cocteau s'adresse... á l'An 2000
Daniel Lousada

«É possível que o que chamamos de progresso seja, de facto, o desenvolvimento de um erro», ouço dizer o poeta Jean Cocteau, a falar em 1962 [um ano antes da sua morte] para os jovens dos anos 2000 [VER VÍDEO]. E, por momentos, interrogo-me: Em que ponto estamos e até onde somos capazes de contrariar o desenvolvimento deste erro? Pergunta sem resposta, obviamente, tipo: como posso acabar com a fome ou o insucesso educativo no mundo? Há quem diga, aliás, numa visão profundamente pessimista, que, estando o homem na origem do progresso e a marcar o seu desenvolvimento, haveremos de chegar, inevitavelmente, de erro em erro, ao erro final!

Como qualquer outro, sou certamente um ponto desta engrenagem, a que chamamos progresso, a contribuir, consciente ou inconscientemente [mais inconsciente que consciente, provavelmente] para o seu desenvolvimento. E sem perspectiva que possa traçar, que me desvie de um erro final que desconheço, e numa visão que procuro optimista, digo apenas que só sei navegar à vista, com o que me é dado ver, sujeito aos erros de perspectiva que influenciam a rota das viagens em que me envolvo. É o erro que me marca, direi então. E ainda bem! Os meus sucessos [se é que os tive] na vida, ou na profissão que escolhi, nasceram dos meus erros! Erros de perspectiva que me obrigam, quando percebidos, a deslocar-me até outros pontos de vista, que apontam a perspectiva rumo ao lugar que procuro. Pois que, sendo um "ponto de vista" – como diz leonardo Boff – uma vista a partir de um ponto, se o ponto onde me encontro mudar, a vista será diferente e outra a perspectiva em que me apoio. Porque só podemos agir sobre o que se encontra perto de nós, dir-se-á então: «Pensar globalmente e agir localmente».

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Da Leitura e resistência à Escrita

Daniel Lousada

«Nos liceus, o ensino do português é um exercício burocrático, um inferno gramatical», leio na página de Luís Osório [1]. E passando os olhos pelos comentários, retenho: «O português é completamente diferente de há 15/20 anos (até menos). A maioria cria uma enorme resistência à escrita porque não traz consigo hábitos de leitura». Tanto quanto julgo saber da minha relação com a escrita, não creio que este comentário reflicta, inteiramente, o que acontece.

Há tempos, ao falarmos do que andávamos a ler, um amigo diz-me: «Não tenho lido nada de especial. Uma coisa daqui, outra dali... Ultimamente, não me tem puxado a escrita!». Com muitos de nós, por estranho que pareça, é a escrita que puxa a leitura; é o "projecto" de escrita que faz ler! A leitura vem para ajudar a responder a um desejo de escrita.

Muitos professores fazem da "escrita"
dos seus alunos o objecto que os leva
à aprendizagem da leitura
Quando falamos de ensino da leitura, o objectivo do ensino [o seu objecto] é a escrita. A leitura é o meio de chegar à escrita. Ensina-se a leitura pela escrita. Muitos professores, aliás, fazem da "escrita" dos seus alunos o objecto que os leva à aprendizagem da leitura 
[VER VÍDEO].

«De facto – diz Roland Barthes – o grande problema é fazer do leitor um escritor. No dia em que se chegue a fazer do leitor um escritor virtual ou potencial, todos os problemas da legibilidade desaparecerão. Se se lê um texto aparentemente ilegível, no movimento da sua escrita compreendemo-lo muito bem. Evidentemente, há que fazer toda uma transformação, quase diria um educação». A educação que leva a aprender a «ler como um escritor», diria Francine Prose [2]. Faço, então, a distinção entre leitura e “leitura da escrita”. A “leitura da escrita” é uma forma particular de ler, uma leitura que não joga apenas com o conteúdo, mas com tudo o que escrever envolve, e que só quem escreve é capaz de fazer. Neste sentido, não é apenas a escrita que se enriquece com a leitura: a leitura precisa de trazer também a escrita consigo para se enriquecer. 

Se quero cultivar o gosto pela escrita junto dos meus alunos, só pelo "exercício da escrita" vou consegui-lo. Não é porque não lê que um aluno «cria uma enorme resistência à escrita»: é porque a escrita não foi percebida, em grande parte, como prioridade, a partir do momento mesmo da iniciação à leitura.

Se observarmos bem o que acontece nas escolas, não são só os alunos que têm resistência à escrita: muitos de nós também resistem à escrita! Quantas vezes falámos com os nossos pares, ou mesmo entre amigos, sobre o que escrevemos, da mesma forma que falamos de livros?
[3] Quantas vezes nos expomos frente aos nossos alunos com a nossa escrita? [4] Qual é a nossa reacção quando chega a nossa vez de escrever uma acta, um relatório?

Não vamos confundir a nossa reacção, face à escrita de uma acta, com a dos nossos alunos, face à escrita que os "convidamos" a escrever – dir-me-ão –. Não sei! Não sei se não será a escrita de "actas" que, a maior parte das vezes, os nossos alunos sentem escrever.
 
No que me toca, não me lembro de ter escrito alguma coisa porque quis, na escola. Mesmo quando era "convidado" a escrever sobre um tema à minha escolha, não era sobre o que queria que escrevia ! E isto porque, tal como na leitura, a liberdade na escrita não tem hora marcada num calendário ou agenda. Tal como o verbo ler, o verbo escrever não suporta o imperativo
[5]. Então, a questão que se coloca é saber como promover a escrita livre, aquela escrita que faz de facto escreventes, num espaço [a escola] onde a escrita é obrigatória. Como tentativa de resposta, Freinet propôs a instituição do Texto Livre.

Sobre este tema, LER: A propósito de Texto Livre >>>

________________________

[1] «Nos liceus, o ensino do português é um exercício burocrático, um inferno gramatical, uma ditadura que mata a capacidade de imaginar. Viajar pela língua deveria ser um exercício de liberdade, uma regata de alma e identidade, não uma colher diária de óleo de fígado de bacalhau. As regras devem ser conhecidas com o conhecimento dos livros e autores, com a história da literatura e a história da história. Mas infelizmente tudo isso vem depois, quando tantos já se perderam. Um equívoco» [LUÍS OSÓRIO - 11.09.2022].

[2] Francine Prose, Ler como um escritor, Casa das Letras, Lisboa, 2012. 

[3] Tive colegas, bem mais leitores do que eu, que devoram livros como não me lembro de ter devorado e que, no entanto, para além da escrita que os "ossos do ofício" obrigam, diziam não escrever. Falta, tantas vezes, o hábito do uso da escrita como instrumento que ajuda a pensar, por exemplo, a profissão. Falta aprender a escrever a profissão. Isto liga-se com enunciado de que, em muitos de nós, é a escrita que puxa a leitura: a leitura que apoia a escrita que fazemos da profissão.

[4] Há professores que se obrigam, com frequência, a escrever sobre o que propõem aos seus alunos, nas mesmas condições em que estes escrevem: na sala de aula, ao mesmo tempo que eles.

[5] "O verbo ler não suporta imperativo – escreve Daniel Pennac –. É uma aversão que compartilha com outros verbos: o verbo amar, o verbo sonhar...". in Como um Romance, Edições ASA, Porto, 1993: p. 11

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Da "Escola a Tempo Inteiro" ou de como o tempo todo das crianças foi tomado pela Escola *

Daniel Lousada

«A Escola a Tempo Inteiro é uma vergonha nacional - diz Carlos Neto, na entrevista que concedeu ao Jornal Público - As crianças não podem ser vítimas do trabalho dos pais. O tempo escolar tem que ser apreciado de uma forma nova».

O apoio à família podia ser diferente? Podia! Se ao tempo fosse decidido outro caminho, se os poderes públicos antes de decidirem, começassem pela pergunta: De que forma é que as famílias têm resolvido o problema da guarda dos seus filhos? Sem respostas à pergunta [porque não procurada], optou-se então pela decisão mais fácil, que não obriga a compromissos com as escolas e as famílias organizadas na resposta. E o resultado está à vista: o tempo da escola a invadir o tempo todo das crianças!

Será possível reverter o que Carlos Neto chama de "vergonha nacional"? Não sei! Com as redes informais de apoio, entretanto destruídas, e não estando nem aí quem estava na linha da frente destas redes, o trabalho a desenvolver seria mais do que imenso. Seria necessário montar de raiz [ou quase] toda uma estrutura de apoio, que as escolas, por si só, sem o apoio empenhado das famílias, nunca serão capazes de montar [e daqui o problema maior]: seria preciso convencer os pais, muitos dos quais confortáveis com a resposta que lhes é oferecidaa investir um pouco do seu tempo e energia na procura de respostas mais amigas dos seus filhos, levando-os a revisitar projectos de sucesso, entretanto abandonados; seria necessário convocar outros actores eventualmente disponíveis [associações de todo o tipo, ligadas à cultura, ao lazer, etc.], sensibilizando-os para a importância do seu contributo nesta área. E, muito importante, seria necessário, na presente conjuntura, que as autarquias dessem um sinal positivo nesse sentido, dispondo-se a apoiar alternativas credíveis, com recursos que poderiam ser, talvez, próximos dos disponibilizados às soluções existentes.** 

Como as famílias não estão, certamente, disponíveis para aceitar o que têm por coisa nenhuma, haverá, da parte das escolas, disponibilidade bastante para contribuir para uma alternativa credível? E da parte do poder autárquico, haverá vontade política para as acolher? Não sei. Os sinais que chegam da parte de algumas autarquias não são lá muito animadores! Indiferente às vozes que denunciam a insensatez desta "escola a tempo inteiro", vejo o município de Vila Nova de Gaia a insistir não só cavalgar mas a aprofundar o mesmo caminho, impondo agora às submissas Direcções de Agrupamentos Escolares, a flexibilização dos horários do 1º Ciclo, de maneira a acomodar as actividades de "complemento curricular", obrigando a remeter para o final do dia, áreas do currículo que aconselham a disponibilidade de cabeças mais frescas e descansadas. A "política" tem destas coisas: pessoas que nos habituamos a respeitar chegam a ministros, ou presidentes de câmara, e parecem perder a capacidade de pensar. 

___________________

Este texto teve uma versão anterior que foi inadvertidamente apagada. Como não foi conservada qualquer cópia, o que agora se apresenta foi escrito a partir das notas e da memória que ficou do texto anterior. A quem nos leu e queria reler a versão anterior apresentamos as nossas desculpas.

** O projecto piloto desenvolvido no conselho de Famalicão, que procura testar uma proposta mais amiga das crianças, merece a nossa atenção [VER AQUI >>>]

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Das reformas do Ensino e da organização do Currículo

in "Desenvolver competências ou ensinar saberes? 
A escola que prepara para a vida"
.  Pensa Editora LTD,
S. Paulo, 2013
Philippe Perrenoud

«O que mais ameaça as reforma do ensino, de modo geral, não são os adversários, mesmo os de má fé, e sim a sua fragilidade conceptual, o seu carácter pouco negociado e a sua participação» 

E a nossa pergunta é:
Será a algo assim que temos assistido nos últimos anos?

Texto de Philippe Perrenoud disponível em >>>

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

Começar a aprender [a ler e a escrever] é difícil: Duas memórias para o futuro


Encontro no livro ERNESTINA de José Rentes de Carvalho, obra autobiográfica, a memória da sua iniciação à difícil arte das letras:
 
«As primeiras palavras que o meu avô me ensinou a soletrar foram, “Alfandega do Porto” que se liam em maiúsculas no topo de cada página dos cadernos em que ele anotava as ocorrências do serviço. Se eu soletrava a preceito ele incli­nava então o caderno para me ensinar as palavras impressas na margem em linha vertical: “Remessa de documentos para a sede”. Aí passou para o abecedário e como eu não mostrasse dificuldade em distinguir e decorar as letras, achou que podíamos avançar sem demora para o jornal. O seu dedo a seguir a linha, eu obediente a papaguear pala­vras de vago significado, esta minha aprendizagem da lei­tura resultou em que nunca me sentiria com gosto para ler histórias infantis.»
  
Já eu aproveitei o facto de ter nascido e vivido alguns anos em estações de comboios, ao tempo de caminhos-de-ferro. O meu avô e outros trabalhadores faziam funcionar uma es­trutura de grande responsabilidade, controlavam máquinas gigantescas, e centenas de pessoas apenas com telefones rudimentares.
 
Das folhas que me davam para eu estar sossegado, e que eu aproveitava para fazer como ele, aprendi ler no alto da fo­lha: “Parte Diária” – o resumo diário da vida da estação – e em baixo: “O Chefe da Estação”. Era difícil e esquisito, mas eu sabia ler aquilo, e copiava palavras afixadas na estação: saída, bilheteira, telégrafo, sala de espera... Mas mal sabia eu que na Escola aquilo de nada me serviria, porque só tinha [tínhamos] cadernos de linhas, ou de duas linhas, para co­piar letras que o professor nos ensinava a desenhar, en­chendo-as de tédio, horas ..., dias a fio, até doer a mão de tanto “escrever”, pelo esforço de não escrever nada!
 
Poder-se-á dizer que Alfândega do Porto ou Parte Diá­ria não será́ o mais apropriado para começar a Arte da Escrita. Mas foi! Sem "ciências da educação", estava ali o necessário para o sucesso nesta difícil aprendizagem: a utilidade, a fun­ção da escrita, estavam ali naquelas folhas, no uso que lhes dava. Mas sobretudo os afectos. A relação afectuosa com um avô... Que sorte a das crianças que tendo avós os acei­tam e aproveitam. João dos Santos, nos seus inúmeros escritos, fala-nos da sua importância nas aprendizagens. Sem afectos não há apren­dizagem, refere.
 
A Escola esquece-se desta componente vital, ao deparar-se com as crianças que se “portam mal”, que “nada querem fazer”, que “nunca estão concentradas”, “sempre desmoti­vadas”, porque o que lhes é proposto não lhes diz nada. E ignora que, a muitas delas, a vida não corre de feição. Que sabemos nós dessas vidas, que os mais novos não entendem, mas sentem? E ao sentirem, reagem, normalmente mal.
 
Continua a insistir-se na ideia de que o primeiro passo para a aprendizagem da língua escrita é a aprendizagem de uma técnica de codificação/descodificação, e que uma rápida análise dos manuais escolares parece confirmá-lo: o inte­resse mantém-se centrado na aprendizagem das letras, não da língua escrita em toda a sua complexidade, da qual a aprendizagem das letras faz parte [não o contrário]. Aqui não cabem nem "Alfândegas" nem "Comboios".
 
Para muitas crianças, a vida fora da escola é rude, e elas não conseguem desligar-se dela ao passar os portões da escola, o que as torna incapazes de cumprir com as suas exigências. Então, se não conseguem desligar-se, talvez parte da solu­ção esteja em deixar entrar na escola parte dos seus mundos com elas, dando-lhe a nossa a atenção. E a escrita é, talvez, uma das melhores portas de entrada de todos esses mundos que as suas vidas carregam: mundos de "estações de comboios e alfândegas" bem mais complicados do que os nossos.
 
E já agora, antes de exigirmos de uma criança o cumpri­mento de uma tarefa, talvez fosse útil perguntar-nos: gos­taria eu de fazer isto?

quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Sobre a "Pedagogia Espectáculo"

Philippe Meirieu


Versão condensada em português de Daniel Lousada 
[DISPONÍVEL TAMBÉM EM PDF >>>]

No domínio da educação, há certas tomadas de posição simplesmente irritantes, em obras de divulgação pedagógica como no livro On achève bien les écolier, de Peter Gumbel [autor britânico radicado em França], um panfleto que recupera teses bem conhecidas desde há décadas, sobre os efeitos prejudiciais da competição desenfreada entre alunos, o carácter inutilmente stressante das avaliações sistemáticas, o cansaço provocado pelo excesso de exercícios repetitivos e de trabalhos de casa, a ineficácia de programas idiotamente enciclopédicos, etc.

Quando apareceu, os grandes meios de comunicação social logo se apressaram a falar do livro como se do acontecimento do século se tratasse (...).

Entendamo-nos: estou, em grande parte, de acordo com algumas das constatações de Peter Gumbel. Até poderia fazê-las minhas numa conversa de amigos e não apenas como provocação. Mas não as teria apresentado de maneira tão caricatural, sem tomar algumas precauções, sem evocar, pelo menos, os argumentos dos meus adversários. Quanto mais não fosse porque no âmbito educativo, mais do que em qualquer outro, creio estarmos obrigados a aplicar o “princípio da tolerância”, enunciado por Paul Ricoeur: “A tolerância não é uma concessão que fazemos ao outro; é reconhecer o princípio de que uma parte da realidade me escapa”.

Não compreendo como é que declarações tão radicais, tão pouco argumentadas histórica e filosoficamente, que apresentam, como novidades extraordinárias, banalidades que se vêm arrastando desde há um século, na bibliografia pedagógica, podem receber tão ampla aprovação. Até porque, se queremos verdadeiramente animar a polémica, mais vale referir certos textos dos inícios da Educação Nova, como o famoso epigrama de Adolfo Ferrière.*

A questão é que Peter Gumbel não disse nada de diferente deste poema, só que o disse com menos talento. O que não impediu os comentadores de serviço, ignorantes da história da pedagogia, de o encontrarem “refrescante” (...), decisivo para o futuro da educação”. Enaltece-se, assim, um pensamento que tem sido relativizado, porque objecto de numerosas e diversas interpretações, sobre o qual os pedagogos se interrogam: (...) Que quer dizer “a actividade da criança deve servir para alguma coisa”? Estamos a falar de uso imediato, de uso futuro, de uso pessoal e cultural? Pode-se opor tão facilmente as mãos e o cérebro? Não haverá um ir e vir permanente entre ambos? O silêncio e a memória serão verdadeiramente inúteis? O aluno pode investigar ciência sem que alguém o guie na sua investigação? Poderá compreender o mundo graças a modelos científicos, apresentados pelo adulto de forma magistral e, ainda assim, aceder à alegria de compreender? Como é possível que um século depois de Ferrière, se passem por alto todas estas perguntas? E o que é mais estranho, como é possível que os defensores oficiais da anti-pedagogia, grandes intelectuais ou pequenos fazedores de opinião das redes sociais, percam o controlo quando alguém apresenta, comedidamente e com infinita prudência, algumas teses sobre a necessidade de diferenciar a pedagogia (...), e fiquem misteriosamente silenciosos perante panfletos pouco escrupulosos na sua enunciação, apesar de terem muito mais impacto na opinião pública do que os escritos pedagógicos que estigmatizam? Como explicar que os tenham tratado – como me trataram tantas vezes – de “impostor” ou de “coveiro” da cultura?

Há algo particularmente irritante, quando vemos as intervenções das estrelas da “pedagogia espectáculo”, a navegar, sem correr o menor risco, nas águas dos lugares comuns mais consensuais. (...) Veja-se, por exemplo, Ken Robinson na sua conferência TED mais célebre. Com muita habilidade e humor, explica que todas as crianças são espontâneas, criadoras e que o sistema escolar, ao submetê-las a exercícios absurdos e estandardizados, mata nelas toda a criatividade. Convoca-nos a “respeitar mais a infância”, a “cultivar cuidadosamente a sua imaginação”, e exorta-nos a inventar uma educação “que assente na busca incessante da capacidade criadora de cada indivíduo”.

Quem poderia opor-se a tais intenções gerais tão generosas? Ken Robinson brinca no registo dos lugares comuns mais sedutores e, com isso, todos os pais podem acreditar que os seus “rebentos” são espontaneamente génios e que, se não conseguirem sê-lo na escola, é porque esta os arruinou profundamente. Quanto aos professores que descobrem que os seus alunos não são nada criativos (...), podem contentar-se em condenar o "sistema" e apelar à "revolução", para não terem de enfrentar a mínima "mudança" concreta nas suas práticas.

A verdade é que a "natureza criativa" da criança não foi atestada nem repartida de forma equitativa no campo social. Por outro lado, não é assim tão certo que, o que tomamos por uma regressão do imaginário, à medida que a criança cresce, não seja, afinal, a descoberta do princípio da realidade que, durante algum tempo, restringe o campo do possível, mas que também dá acesso ao conhecimento que leva a um verdadeiro domínio do mundo: Como sabemos, o pensamento científico é simultaneamente abertura e renúncia; implica formular hipóteses e testá-las, a fim de identificar quais são os verdadeiros instrumentos de inteligibilidade do mundo, "saberes estabilizados", que permitem aos seres humanos partilhar conhecimentos comuns.

Além disso, a exaltação da “criança criativa”, perante a qual os adultos só podem maravilhar-se, o uso constante da metáfora hortícola, que apresenta a criança como uma planta que tem em si todo o potencial para florescer naturalmente, sob o nosso olhar extasiado, ignora as terríveis desigualdades sociais resultantes, em particular, da educação familiar.

É por isso que não podemos contentar-nos – mesmo que o façamos com a maior habilidade – em pregar a abstenção educativa para "deixar a criatividade desenvolver-se livremente". Mais ainda: não podemos insinuar que a criatividade é um dom, que apenas necessita que não se lhes imponham restrições escolares. A criatividade é algo que também se “ensina”; requer uma pesquisa permanente do professor para encontrar situações estimulantes (...), uma atitude positiva e exigente de expectativas em relação a cada aluno. Podemos certamente assumir que Ken Robinson sabe tudo isto... E no entanto, dando a entender o contrário, enche o seu público de ilusões, ao mesmo tempo que anestesia, com o seu optimismo absurdo, qualquer verdadeira inventividade pedagógica.

Daqui a minha irritação: na circulação de lugares comuns pedagógicos que, por trás de uma unanimidade de fachada, podem levar ao desenvolvimento de teorias e práticas contraditórias que, na realidade, perseguem objectivos opostos. Ora bem, os nossos filhos merecem muito melhor. Eles merecem, ao menos, um pouco de lucidez. Eles merecem o nosso esforço em descobrir as verdadeiras questões pedagógicas e políticas em jogo na nossa educação. Merecem adultos com os pés no chão, que não reneguem nada, mas que também não se deixem enganar.

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* In Pédagogie des lieux communs aux concepts clés, ESF Éditeur, Paris: 2016