quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Ainda à procura do melhor método de iniciação à leitura! E não saímos disto!

Algumas coisas que eu sei sobre o assunto

[Também disponível em PDF>>>]

Percorro "A pedra e o desenho" de Gonçalo M. Tavares,[1] com desenhos de Julião Sarmento, e detenho-me ao ler: "Toda a escrita tem a forma de vestígio; todo o vestígio a forma da escrita". Na continuação do percurso, umas páginas à frente, detenho-me novamente ao encontrar-me com "Todas as letras deixam vestígios atrás. Ler é estar atento aos vestígios, não às letras". Fixo-me nesta última expressão: "Ler é estar atento aos vestígios, não às letras". Releio-a... Horas antes tinha-me encontrado, no "Le Figaro", com o artigo de Caroline Beye, apresentado com a pergunta “Pourquoi les méthodes inefficaces dominent à l'école?”[2], uma espécie de manifesto a favor do regresso dos métodos fónicos à escola [da qual nunca saíram], dando voz ao movimento neste sentido liderado pelos cientista do cérebro. E fico perplexo! Como se os métodos fónicos [atentos às letras], nas suas múltiplas variantes, não tivessem liderado o processo de iniciação à leitura, pelo menos até à entrada dos anos setenta [se é que não lideram ainda], com o resultado que se viu.

Frank Smith, na introdução ao seu livro “Aprendizagem significativa, dizia que se fosse responsável por ensinar a ler um grupo de crianças precisaria apenas de: 1- saber muito de leitura e escrita, do seu processo de construção, como é vista pelas crianças; 2- e saber muito sobre as crianças que teria frente a si, se sabiam já distinguir os sinais convencionais de escrita de quaisquer outros sinais, o que é que elas conheciam desse objecto chamado escrita [3]. Porque, sejamos claros, nenhuma criança precisa de um adulto à frente para começar a aprender a ler. São essas aprendizagens que a criança fez “sem autorização” que é importantíssimo (re)conhecer no decurso do processo. Ora, nesta perspectiva, o método didáctico, tal como o conhecemos, atrapalha mais do que ajuda. Porque as crianças não querem saber do método escolhido, elas querem apenas saber; compete então ao adulto ajudá-las a dar sentido às letras a partir dos "vestígios" que mereceram a sua atenção, para que além de quererem saber elas queiram também aprender [4].

“Ler é estar atento aos vestígios, não às letras”. Foi certamente no encontro com estes vestígios que Alberto Manguel aprendeu a ler: "Descobri que sabia ler aos quatro anos. Já tinha visto vezes sem conta as letras que sabia [porque mo tinham dito] serem os nomes [os vestígios] das imagens debaixo das quais se encontram. (...) Mas havia mais: eu sabia que aquelas formas não só reflectiam o menino por cima delas, mas também diziam o que o menino estava a fazer"[5].

Certos "cientistas do cérebro" confundem o ensino da leitura com a prática de rituais impressos nas cartilhas que condenam. Nada sabem de ensino da leitura de facto! Pelas suas investigações, assentes na observação do funcionamento do cérebro, elegem as consciências fonética e fonológica como determinantes na aprendizagem da leitura e, vai daí, apontam um método a partir desta eleição! Mas nada dizem sobre a forma como as crianças acedem àquelas consciências fonológica e fonética. E esquecem que os resultados de uma investigação não fazem uma pedagogia. Se o fizessem teríamos uma pedagogia científica [não seria pedagogia, portanto] e a educação seria uma ciência [6].

Se uma criança a soletrar palavras, envolvida no trabalho de associação de fonemas com os respectivos grafemas, faz "disparar o fogo de artifício" que  "ilumina" uma determinada zona do cérebro, quando muito poder-se-á concluir pela importância dos sons da fala, no processo de aprendizagem da leitura. Não é de todo legitimo retirar da observação deste "espectáculo" a superioridade dos métodos fónicos sobre todos os outros. Até porque nenhum método descarta a importância da consciência fonológica; têm é formas diferentes de chegar a ela e desenvolvê-la.

"Não existe uma ligação directa entre o que os investigadores fazem e o que é feito na sala de aula" – afirma Edouard Gentaz –. "A investigação é necessária. Mas não se pode retirar receitas sem uma análise crítica do contexto"[7]. Emília Ferreiro, por sua vez, alertava os professores para não fazerem um método didáctico a partir da investigação que realizou na década de setenta, na área da psicolinguistica. Porque as conclusões da ciência não servem para ser transformadas num método, mas para ajudar a tomar decisões. Decisões pedagógicas, não científicas.

Desde que me conheço, como professor, que nos interrogamos sobre o melhor método de ensino da leitura e da escrita. Chega de perguntar por ele! Esse método [didáctico] não existe! O que existe são informações, ideias, sobre o modo como as crianças aprendem. O que temos é um objecto [a escrita] ao qual queremos que as nossas crianças acedam.

“Todas as letras deixam vestígios atrás. Ler é estar atento aos vestígios, não às letras". Então vamos trazer a escrita para a escola, não as letras, e descobrir com ela [a escrita] onde nos levam as letras. Porque ninguém aprende sobre um objecto se não lhe for dado manipulá-lo, para ver de que é feito.

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[1] Lisboa, Relógio D'Água, 2022
[3] Porto Alegre, Artmed, 1999  "Se eu realmente fosse responsável por ensinar um grupo de crianças numa manhã de segunda-feira (...), precisaria de ter a certeza de que saberia o suficiente sobre leitura em geral e sobre aquelas crianças em particular para nunca precisar de fazer essa pergunta a um estranho".
[4] Philippe Meirieu distingue o querer saber do querer aprender. Eu gostava de saber muita coisa, mas nem sempre a intensidade do desejo me faz querer despender o esforço que o trabalho de aprender exige. 
[5] Uma história da leitura, Lisboa, Editorial Presença, 1998
[6] Temos ciências da educação que ajudam a tomar decisões nesta área; não temos a ciência da educação que aponta o caminho definitivo, sem desvios.

sábado, 19 de novembro de 2022

Da criança que apenas quer saber à criança que deseja aprender

In "Ce que l'école peut encore pour la démocracie - Deux ou trois choses que je sais (peut-être) de l'éducation e de la pédagogie", Autrement, Paris, 2020.
Versão portuguesa de Daniel Lousada [também disponível em pdf >>>]

Não estou certo de que a criança que eu fui tenha saboreado espontaneamente o desejo de aprender. Sem ofensa àqueles entusiastas que se espantam com a infância curiosa e ávida de conhecimento, acho que o desejo de aprender é uma construção lenta e complexa, em grande parte dependente do empreendimento educativo.

Naturalmente que toda a criança deseja ter tudo e tudo saber, não tenho qualquer dúvida sobre isso. Deste ponto de vista, o nascimento representa um trauma do qual ela levará algum tempo – às vezes até toda a vida – a recuperar. Primeiro ela precisa de aceitar que não terá, ou dificilmente terá, satisfação imediata: ela tem fome e frio, pede o olhar da sua mãe e o colo do seu pai, mas apesar do carinho que estes sentem por ela, às vezes estão ocupados com outros afazeres. Ela é obrigada a esperar e, ao esperar, descobre que não é o centro do mundo. E que a frustração faz parte da sua vida. Mas é uma frustração que se transforma numa satisfação mais intensa quando recebe a atenção que deseja. É, portanto, uma frustração que precisa de aprender a viver como uma promessa. Porque é na descoberta do prazer da espera que se encontra a fonte do desejo. Um desejo que não acaba na sua realização, porque guarda a memória da espera e mantém aberta a possibilidade do imprevisto. Um desejo que rompe com a exigência caprichosa da posse imediata e torna possível a transição criadora do “ter” ao “ser”, quando se renuncia à voracidade do tudo de imediato para se tornar disponível ao que nem sempre é possível ser dado, ao que poderá acontecer sem estar já previsto. Quando desistimos de nos identificarmos com o que temos para alcançar o que está para além de nós.

Os adultos têm, neste domínio, o dever imperioso do acompanhamento. Cabe-lhes ser o rosto da promessa que permite à criança transformar as suas frustrações em esperança: «Não podes ter tudo porque desejas. Mas é o desejo que te faz crescer se, pelo desejo, conseguires escapar da subjugação aos teus impulsos. É o desejo que te levará, um dia, a procurar um significado para a tua existência num lugar que não o da tua família». Metabolismo libertador se é que existe: permite emancipar-se dos seus próprios caprichos e resistir aos apelos publicitários da sociedade de consumo. Permite-nos desfrutar daquilo que nos faz humanos por excelência: o adiamento da acção e a suspensão da voracidade consumista, a disponibilidade para a alteridade, a abertura ao pensamento.

E, tal como têm o dever de ajudar as crianças a libertarem-se da tirania do ter, os adultos têm também o dever de as ajudar a emanciparem-se da “ditadura do saber”. Porque se a criança não quer aprender espontaneamente, ela quer certamente saber. Desvendar o mistério das suas origens, com certeza. Mas também, bem depressa, os mistérios do universo. Não é de surpreender, portanto, que ela, desde muito cedo, repita incansavelmente “porquê?” sem realmente se aventurar muito no “como?”. É que o “porquê” exprime a sua necessidade de encerramento, atesta a sua vontade de ter uma explicação que a preencha e, portanto, extinga a sua procura. Funciona no mesmo registo do capricho: “Tudo já”. Dispensa tanto a aprendizagem como o capricho procura dispensar a espera, que o acto de aprender exige. Quer uma explicação definitiva, pois o capricho exige a posse imediata.

Crescer é, portanto, assumir a própria incompletude e partir rumo ao desconhecido. Crescer é renunciar ao saber desligado do trabalho de aprender. É recusar dar-se por satisfeito com explicações superficiais totalizantes. Significa, de uma vez por todas, romper com os sistemas que apoiam os porquês que descartam o como.

Ora, crescer é talvez mais difícil hoje do que em qualquer tempo passado. Em primeiro lugar, porque a incerteza dos nossos destinos individuais e colectivos torna-nos cada vez mais vulneráveis aos vigaristas das certezas absolutas. Em segundo lugar, porque à simplificação dos dogmas juntaram-se todo o tipo de teorias da conspiração: Ambos, frequentemente construídos sobre a mesma lógica de “bode expiatório”, afirmam abraçar a "verdade" sem qualquer reflexão ou investigação, entregando-se ao pensamento caprichoso das certezas inquestionáveis. Preenchem a nosso pensamento e, ao preenche-lo, fazem-nos seus escravos ao esconder de nós qualquer falha que os possa questionar.

Escusado será dizer que todo este pensamento mágico é amplamente ajudado pelo fantástico desenvolvimento das “próteses tecnológicas” de hoje: instrumentos automatizados conectados em rede, aplicativos digitais e “motores de busca” – terrível oximoro! – de todo o tipo: «Sobretudo, não faças perguntas sobre o seu funcionamento! É magia! Temos todas as respostas, só precisas de fazer as tuas perguntas». Porquê aprender, de facto, quando basta um treino de curta duração no "manuseamento intuitivo" destes dóceis servidores, que colocam a omnipotência na ponta dos nossos dedos, para aceder, ao ritmo frenético dos algoritmos e das redes sociais, a todos os saberes [mas não ao conhecimento] do mundo?

É assim que as nossas crianças – ou pelo menos aquelas que não tiveram a sorte de ter uma comitiva de adultos a inculcarem-lhes o desejo de aprender – lutam por entender a teimosia dos seus professores: elas são convidadas a sacrificar actividades, das quais obtêm satisfação imediata, em favor de exercícios intelectuais que parecem ter sido inventados por professores sádicos, com o único propósito de verificar a sua capacidade de realizar tais exercícios. Prometem-lhes para mais tarde uma vaga satisfação, se conseguirem integrar-se no mercado de trabalho. Mas essa é uma satisfação que permanece bastante distante e, se quisermos ser honestos, cada vez mais aleatória. Então, por que não cingir-se a algumas competências transmitidas empiricamente por corporações sociais e a algumas representações resumidas, que lhes fornecem as chaves para ler um mundo agora reduzido a um cenário de jogo de computador? Porquê dar-se ao trabalho de aprender, fazendo operações que as máquinas, cada vez mais “androidizadas”, farão sempre mais rápido e melhor do que nós? Porquê "abrir o capô" e tentar compreender como funciona o motor quando tudo o que precisa é da chave de ignição? Porquê preocupar-se com conhecimentos geográficos, históricos, económicos ou filosóficos, quando tem um terminal digital miniaturizado no seu bolso que pode responder a tudo? Porquê ler e documentar, questionar e confrontar as suas posições com as dos outros, quando é muito mais confortável acampar num qualquer dogma, com o qual se identifica e que, partindo deste, pode decidir sobre tudo sem nunca ter examinado nada?

Existe um metabolismo decisivo que o adulto deve acompanhar a fim de ajudar as crianças a escapar do comportamento infantil, que lhes é próprio, do saber sem compreender: é necessário, de facto, que estas consigam encontrar mais prazer no pensamento assente na tentativa e erro do que na opinião certa não construída por elas. Precisam de descobrir que existe mais satisfação na busca da precisão, da justiça e da verdade, do que na afirmação presunçosa de uma doutrina. Precisam de encontrar o prazer de enfrentar o obstáculo que as obriga a examinar, investigar e reflectir, em vez de se esquivarem a ele com trejeitos desdenhosos ou procurar destruí-lo em ataques de raiva. Trata-se de um metabolismo lento e complexo que requer situações estimulantes e o acompanhamento de adultos exigentes, um metabolismo que, gradualmente, transforma a "criança que apenas deseja saber" num "sujeito que procura aprender". Um metabolismo que permite protegê-las da maldição das certezas absolutas, que raramente são suas.

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

As neurociências não vão revolucionar as escolas

Edouard Gentaz numa entrevista conduzida por François Jarraud para "Le Café Pédagogique"

Nenhuma disciplina científica pode razoavelmente fornecer uma receita pedagógica mais ou menos milagrosa.

Será este livro uma reacção ao imperialismo das neurociências?

Não, é uma reacção ao mau uso das neurociências. O que dou é uma opinião sobre a sua má utilização na educação. Tento mostrar as contribuições de cada disciplina e explicar melhor o que são realmente as neurociências e o que elas podem oferecer relativamente a outras disciplinas. Precisamos de uma visão multidisciplinar para compreender a escola e a educação.

Podem as neurociências ditar as práticas de ensino?

Não, não podem. Mas podem lançar luz adicional sobre outras disciplinas. O que pode realmente lançar luz sobre as práticas é a colaboração entre professores e investigadores no sentido de desenvolver uma investigação que possa ter efeitos sobre as práticas profissionais.

No livro, critica o guia ministerial sobre a aprendizagem da leitura. Porquê?

Por detrás desta crítica, está a ideia de discutir a ligação entre ensino e investigação, as recomendações que podem ser feitas e o que é ou não legitimo concluir sobre a investigação. Não existe uma ligação directa entre o que os investigadores fazem e o que é feito na sala de aula. A investigação é necessária. Mas não se pode retirar receitas sem uma análise crítica do contexto. 

Por outro lado, é importante declarar eventuais conflitos de interesses. Este é um dos princípios básicos que seguimos quando escrevemos recomendações ou qualquer tipo de actuação. O mesmo princípio deveria ser adoptado na educação.

O livro também critica a pedagogia Montessori e a Meditação, práticas que se estão a difundir rapidamente na escola francesa. Porquê?

Sou crítico dos usos que são feitos da pedagogia Montessori e dos argumentos apresentados em sua defesa, quando se diz, por exemplo, como é dito por Alvarez, que a pedagogia Montessori se baseia nas neurociências. Quando analisamos esta pedagogia, verificamos que os resultados não são tão claros assim. A pedagogia Montessori não é o alfa e ómega da pedagogia e não resolverá todos os problemas. No fim de contas, entre as escolas Montessori e as outras escolas, as diferenças nos resultados não são significativas.

O mesmo se passa com a meditação. Pode ser um bom instrumento para trabalhar a atenção ou competências psicossociais. Mas não há provas no que respeita aos resultados dos alunos.

O que normalmente recomendaria para o jardim-de-infância?

No jardim-de-infância, são desenvolvidas competências nas crianças, que parecem fazer parte de actividades extracurriculares, quando deveriam fazer parte do seu currículo mesmo. Estou a pensar nas brincadeiras, nos jogos, nas actividades lúdicas, no brincar de faz de conta, hoje infelizmente em desuso. E no entanto, são essenciais no jardim-de-infância, pelos efeitos positivos que produzem. Ao formarmos e incentivarmos os professores a dar a estas actividades o seu devido lugar, ajudamos as crianças a regular as suas emoções, a melhorar as suas competências emocionais e, portanto, académicas. É também essencial no apoio ao desenvolvimento da língua. Em Genebra, conseguimos integrar estas actividades no currículo escolar.

Em geral, pode a investigação ditar as práticas pedagógicas?

Não. Ela pode apenas alimentar a reflexão. É uma alavanca para a tomada de decisões. Pode mostrar aos professores os resultados da investigação, mas cabe ao professor, na sala de aula, encontrar a prática profissional adequada. E este é um exercício muito complicado.

Neste livro, pede uma revisão da formação de professores. O que precisa de ser mudado?

A instrumento mais eficaz para melhorar o ensino é a formação de professores. O que se faz hoje em dia, nesta matéria, é insuficiente. Ela deveria ser mais longa e promover mais estreitamente a ligação entre a teoria e o trabalho de campo. Dada a complexidade da profissão, não é possível formar professores rapidamente, especialmente se forem do 1º ciclo, que leccionam muitas disciplinas escolares e que, além de transversais, se dirigem a públicos muito diversos. A esta formação deveria seguir-se uma formação contínua, que poderia passar pela frequência de "um ano na universidade" a cada 4 ou 5 anos.

[Versão portuguesa: DL]

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ensinar exige ética e estética

A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode ou não deve ser feita a distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da estética. Decência e boniteza de mãos dadas. Cada vez me convenço mais de que, desperta com relação à possibilidade de enveredar-se no descaminho do puritanismo, a prática educativa tem de ser, em si, um testemunho rigoroso de decência de pureza. Uma crítica permanente aos desvios fáceis com que somos tentados, às vezes ou quase sempre, a deixar as dificuldades que os caminhos verdadeiros podem nos colocar. Mulheres e homens, seres histórico-sociais, nos tornamos capazes de comparar, de valorar, de intervir, de escolher, de decidir, de romper, por tudo isso nos fizemos éticos. Só somos porque estamos sendo. Estar sendo é a condição, entre nós, para ser. Não é possível pensar os seres humanos longe, sequer, da ética, quanto mais fora dela. Estar longe dela, ou pior, fora da ética, entre nós, mulheres e homens, é uma transgressão. É por isso que transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano no exercício educativo: o seu carácter formador. Se se respeita a natureza do ser humano, o ensino dos conteúdos não pode dar-se alheio à formação moral do educando. Educar é substantivamente formar. Divinizar ou diabolizar a tecnologia ou a ciência é uma forma altamente negativa e perosa de pensar errado. De testemunhar aos alunos, às vezes com ares de quem possui a verdade, 
um rotundo desacerto. Pensar certo, pelo contrário, demanda profundidade e não superficialidade na compreensão e na interpretação dos factos. Supõe a disponibilidade à revisão dos achados, reconhece não apenas a possibilidade de mudar de opção, de apreciação, mas o direito de fazê-lo. Mas como não há pensar certo à margem de princípios éticos, se mudar é uma possibilidade e um direito, cabe a quem muda - exige o pensar certo - que assuma a mudança operada. Do ponto de vista do pensar certo não é possível mudar e fazer de conta que não mudou. É que todo pensar certo é radicalmente coerente.

Paulo Freire

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

A propósito de Neurociências e do cérebro que aprende a ler

Stanislas DEHAENE [1] desconfia de «cartilhas de desenhos e pouco texto. Existe o risco enorme de os alunos memorizarem as posições fixas de cada palavra. Dão a impressão de saberem ler, mas não sabem» − Já eu sou avesso a qualquer tipo de cartilha, tenha ou não bonecos. Haja um ministro da educação que se disponha a vedar-lhes a entrada na escola, e tem-me a seu lado. Mas isto são contas de outro rosário, que deixo para outras escritas −. «Em vez de focar os esforços no ensino das unidades visuais, é preciso mudar para unidades auditivas. Sons, fonemas», continua Stanislas DEHAENE, reforçando a ideia de que, no que diz respeito à aprendizagem da leitura, «o cérebro aprende melhor pelo som do que pela imagem»[2] Uma ideia a merecer algumas considerações.

Vem isto a propósito da notícia que dá conta de que, em França, o «"Conseil scientifique de l’Éducation nationale" deplora a utilização do método misto nas escolas».

O tratamento fonológico da palavra é importantíssimo, ninguém tem sobre isto qualquer dúvida. Mas a aprendizagem da leitura não se reduz ao desenvolvimento da consciência fonológica. Até porque sem a imagem que nos chega pelos olhos [ou pelo tacto, no caso da pessoa cega], não há leitura: a leitura faz-se do encontro do fonema [que o ouvido aprendeu a captar], com o respectivo grafema [que os olhos aprenderam a ver]. E é na realização deste encontro que tudo se complica. Porque o fonema, que o grafema dá a ver, exige uma grande capacidade de abstracção: à silaba podemos chegar facilmente pela fala, falando pau-sa-da-men-te; mas ao fonema, fora de uma aprendizagem da leitura onde a palavra está ausente, só com muita dificuldade chegamos a ele, se chegarmos[3].

As crianças que memorizam as posições fixas das palavras não dão [porque não é isso que querem] a impressão de saberem ler. Esta impressão está somente na cabeça dos que vêem os seus gestos dessa forma. Elas estão apenas a fazer de conta. Uma forma muito própria de entrar no mundo dos adultos e do qual a escrita faz parte. Nós só temos de seguir os seus gestos e facilitar-lhes a entrada. Uma criança que "lê de memória"[4] sabe que não sabe "ler de verdade". Mas com isto aprende algo de muito importante sobre a escrita, se nos dispusermos a ensinar-lhe: que a posição da palavra na frase conta, e que se a palavra mudar de lugar a frase não é a mesma e, provavelmente, deixa de fazer sentido. E o mesmo se passa relativamente ao lugar que a letra ocupa na palavra.

Quando falo de leitura, falo da leitura que o fascínio da escrita nos convida a fazer. Um fascínio autêntico das crianças pequenas, que fica tantas vezes à porta da escola. Célestin FREINET foi, talvez, o pedagogo que melhor interpretou este convite numa prática. Abriu a escola à escrita [que o professor faz] da fala das crianças. Com ele a leitura é, desde o início do processo de aprendizagem, um meio de aceder a ela [escrita]. E, num tempo sem zonas iluminadas do cérebro para ver, a palavra surgiu na sua totalidade visual e sonora, plena de significado[5], no decurso da aprendizagem da leitura.

Nem tudo o que se passa no decurso do processo de aprendizagem da leitura e da escrita tem de ser "científico" ou se explica "cientificamente". Se Stanislas DEHAENE desconfia da utilização da imagem no ensino da leitura, eu desconfio das práticas pedagógicas amarradas unicamente a conclusões da ciência. A pedagogia não se dá bem com ditaduras científicas: tem na devida conta os conhecimentos que a ciência produz, mas não corre a fazer um método com eles: os resultados de uma pesquisa não são para ser, necessariamente, transformados num método. Caímos nesse equívoco no passado, e parece que queremos voltar a embarcar no engano: duas áreas do cérebro, ligadas ao tratamento fonológico, "iluminam--se" durante a aprendizagem da leitura, e corremos logo a proclamar as vantagens dos métodos fonéticos sobre os demais, como antes proclamámos a superioridade dos métodos globais, escudados então nas descobertas do gestaltismo. E esquecemos que um método didáctico é um protocolo para administrar com cuidado. Até porque nem todos reagem de acordo com o esperado, e é precisa muita atenção aos efeitos secundários!

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[1] Director da unidade de neuroimagem cognitiva do Instituto Nacional de Pesquisa Médica e de Saúde de França [in Aprender a ler: uma revolução no cérebro. Entrevista conduzida por Mariana SGARIONI, para a revista Neuro Educação.

[2] Ideia baseada na observação que dá conta da activação de duas áreas do cérebro ligadas ao tratamento fonológico, durante a aprendizagem da leitura.

[3] José MORAIS, num estudo publicado em “A arte de Ler” [Edições Cosmos, Lisboa, 1997] com adultos analfabetos, dá conta de que estes não possuem consciência fonética.

[4] No português europeu dizemos que aprendeu de cor, que traduzimos do francês «aprendre par coeur», aprender pelo coração.

[5] Afinal, ensinar a ler só faz sentido com o sentido daquilo que se ensina a ler presente. Um sentido que a investigação de Stanislas DEHAENE, não contempla.

terça-feira, 1 de novembro de 2022

A escrita satisfaz necessidades de diálogo com o real que nos acolhe

Durante um ano lectivo fui lendo os escritos de uma criança de 9 anos, com muitas dificuldades escolares, alheado, aparentemente desinteressado, quase apático ao que o rodeava. Neste falso ar de sonhador, consegui interessá-lo pelo que parecia ser o mais difícil: a escrita. Com a valorização que o grupo de colegas lhe deu, começou a escrever regularmente, acompanhando-os e fazendo como eles..., aproximando-se, desta forma, de um outro modo mais normal de se relacionar connosco.

Vários dos seus textos relatavam os seus fins-de-semana, descreviam a casa onde habitava, os pais no 1º andar e os avós no rés-do-chão... E enquanto os pais não chegavam do trabalho, ele ficava em casa dos avós, e esperava. A escrita envolvendo figuras familiares e suas vivências repetia-se: uma casa com vida própria, que se distinguia das casas dos colegas que moravam em prédios, com muitos andares e confusão. Tudo absolutamente normal, harmonioso, feliz para uma criança de 9 anos!

E assim vivemos um ano, com a escrita como importante elemento de trabalho aglutinador. Era uma escrita livre e libertadora[1], como toda ela deve ser, mesmo dentro de um quadro de aprendizagem imposto pelos programas escolares.

No fim do ano lectivo participei numa daquelas reuniões de avaliação global, a que chamávamos de “estudo de caso”, envolvendo todas as pessoas referidas àquele “caso” [esta criança de 9 anos] e a sua família. Levei comigo tudo o que até então vivêramos e que tinha como bom: as descrições e a harmonia que transparecia dos seus escritos.

Foi-me então dito que esta criança nunca conhecera o pai nem os avós, e que estava ao cuidado de uma tia, irmã da mãe, já que esta se tinha desinteressado dele.

Fiquei contente por ele: que se lixe “a” verdade, pensei. A verdade que ele construiu é bem mais forte. Com a escrita satisfez necessidades pessoais íntimas, em diálogo com o real que o acolheu ou por ele acolhido, tanto dá.

Não é por acaso que Edward Bunker, em a “Educação de um ladrão”[2], diz que algumas vezes teve de vender sangue para pagar o curso de escrita criativa por correspondência, da Universidade da Califórnia, realçando desta forma a importância da escrita, que vai muito além da função de comunicação que lhe é reconhecida. E, por sua vez, José Ovejero, diz, em “Escritores delinquentes”[3], que escreve porque, com a escrita, tem um instrumento que lhe permite derrubar a aparente ordem da realidade, já que contar histórias é uma maneira de entender o mundo, com frases que soam mais ou menos bem, com maior ou menor justeza. A escrita pode ser um instrumento poderoso de mediação com um mundo que agride.

Dar esse poder às crianças é dar-lhes uma "arma de defesa pessoal". É tão importante saber escrever para poder escrever as suas histórias, histórias determinantes, em muitos casos decisivas nas suas vidas. E daqui o cuidado em não querer saber mais do que a criança, com a sua escrita, quer contar; a atenção que é preciso ter para não invadir a sua vida, evitando confrontá-la com as histórias que conta, numa espécie de coscuvilhice ou psicanálise de pacotilha.

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[1] No sentido do que lhe atribui Freinet, quando propõe a prática do “texto livre”

[2] Edward Bunker. Education of a Felon. Newy York, St. Martin’s Press, 2000

[3] José Ovejero. Escritores Delincuentes. Madrid, Educiones Alfaguara, 2011

segunda-feira, 31 de outubro de 2022

Pedagogo é aquele que faz sair de casa

Jan Masschelein
Excertos de "Fazer escola: a voz e a via do professor", in Larrosa e outros, Elogio do Professor, Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2021

O conceito de pedagogo é formado por duas palavras gregas: pais [criança] e ago, que significa conduzir [con-ducere] ou colocar em movimento. Portanto, o pedagogo acompanha a criança, conduz a criança, coloca-a em movimento [é por isso que em francês se diz que o professor dá um “curso” (com significado de aula), e não profere um “discurso”, pois o “dis” é um elemento privativo que indica aqui o cessar do movimento do “curso”, ao passo que o “curso” aponta a suspensão do discurso, o colocar em movimento]. E isso deve ser entendido primeiramente como um deslocamento – e, portanto, como o acompanhar em um caminho, uma via, e a mais importante era a via em direcção à escola. Tratava-se, tanto para o pedagogo quanto para a criança, de deixar a casa (oikos) para ir para os locais de exercício (…) e de estudo. (…) Partindo dessa imagem, poder-se-ia dizer que o pedagogo faz sair de casa, mas de um modo que adoça a saída e, portanto, a exposição para a criança. (…)

É por essa razão que o pedagogo está crucialmente ligado a uma viagem para fora, é a via do professor que compartilha a via da criança. E essa viagem, segundo Michel Serres, consiste em deixar o lugar do nascimento [do latin nasci, que quer dizer “nascer”, e que está ligado à noção de natureza], isto é, deixar o ventre da mãe, mas também a sombra projectada pela casa do pai e pela paisagem da criança. (…) E Serres acrescenta que durante essa passagem muitas coisas mudam. O escravo se transforma de algum modo em professor, e a via transforma-se em escola (…).

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

"RECOMEÇAR"

Hoje, por diversas razões, apeteceu-me retomar as minhas “escritas” que tinha interrompido por algum cansaço de cacofonias e a necessidade de controlar a impulsividade que sentia para comentar os “excessos” da (des)informação…

Tive a sorte de me “cruzar” com a excelente crónica de Tolentino Mendonça que a amiga Rosário Caldeira tão bem seleccionou e publicou na sua página de fa­ce­book. Repeti o título que é tão amplo e permito-me citar este trecho:

Há um dom naquelas estações em que a vida se re­solve transparente, se movimenta em harmonia e tudo habil­mente coincide.”

E é nessa harmonia que me quero inspirar para hoje re­cordar as mulheres “sem fotos” que preencheram a vida que corria na minha cidade. Lembro alguns ros­tos, alguns nomes mas sobretudo vidas de trabalho, cansaço e pouco rendimento mas que aliviavam as de alguns citadinos.

Neste cortejo de rostos, recordo as “lavadeiras”! que vi­nham de Alfaião, com os burros carregados de roupa la­vada com restos de cinzas e sabão feito, e que em casa bran­queavam ao sol. Um ritual de do­mingo, na casa da minha mãe, era receber a lava­deira, contar as peças da semana anterior e fazer a listagem das peças para lava­gem na se­mana se­guinte. Essa tarefa era minha desde que comecei a saber escrever. Lembro depois que a lava­deira almo­çava connosco, fruto daquela afabilidade apa­nágio da mi­nha mãe.

Recordo as leiteiras que bem cedo saiam dos seus lugarejos, ainda longe da cidade, e distribuíam o leite que inva­riavelmente era fervido antes de ser servido ao pe­queno-almoço de quem tinha o privilégio de o poder tomar com o pão fresco, que as padeiras colocavam, enquanto nascia o dia, nos sacos deixados na porta de entrada de alguns mais favorecidos.

Recordo as mulheres que carregavam as estevas que acen­diam os nossos fogões e as nossas braseiras, e com as quais se ou­sava discutir o preço do feixe das urzes; as mulheres, que iam ao mercado manhã cedo, esco­lhiam os dias da chegada do peixe mais fresco, trans­por­tavam na cabeça sacos carregados e que, com an­dares “acrobatas”, fizeram os seus estragos nas “pos­turas” que se materializaram nas artroses precoces.

Era um tempo de percursos feitos a pé ou de burro, sem “luzes”, só de alguma esperança, com neve, frio, chuva ou sol…por caminhos enviesados, em madru­gadas mal acor­dadas e regressos a casa com bolsos de dinheiros esmo­lados, porque todos discutiam pre­ços.

Não sei se se chamavam Marias, Aidas, Antónias ou Gui­lher­minas… Sei que eram mulheres de força, algumas viúvas de homens vivos, interessadas na educação dos seus fi­lhos e que foram envelhecendo em silên­cios nunca parti­lhados.

Não! Nesse tempo não era nada bom!
Hoje quero celebrar essas mulheres silenciosas, sem voz, só presentes quando se mostra um Portugal de miséria, e não deixar que as traições da memória ve­nham dizer: “nesse tempo é que era bom”!


Lembro, a propósito, uma homenagem feita recente­mente às carquejeiras que “invadiam a cidade do Porto”, até há 70 anos, e que um grupo de mulheres de boa von­tade teve o ensejo de lhe prestar home­nagem.

Quero voltar a minha Bragança, percorrer ruas e pra­ças e verificar se, em algum tempo e em algum lugar, vejo essas gloriosas anónimas serem relembradas com a força e o respeito que merecem. Estou farta de títulos e de conde­corações que hoje “te dou a ti” para tu, mais tarde, “dares a mim” ou a um dos meus…

domingo, 23 de outubro de 2022

Educação escolar: Entre a civilização e a barbárie

[TAMBÉM DISPONÍVEL EM PDF>>>]

O futuro há-de brotar da escola. Tudo que for edificado sobre outra base ficará construído sobre areia. Mas, por desgraça, a escola pode tanto servir de cimento para os baluartes da tirania quanto para os castelos da liberdade. Deste ponto de partida podemos arrancar tanto a barbárie quanto a civilização” - F. FERRER i GUÀRDIA[1].

Situamos Francisco Ferrer no seu tempo e recordamos que, nesse tempo, fazia-se ainda a distinção entre educação e instrução. Imaginamos então Ferrer como alguém à frente do seu tempo, a recusar o acto de instruir fora do acto maior de educar. Porque a escola que tem a ilusão de que apenas instrui e deixa a responsabilidade de educar nas mãos da “vida privada”, arrisca-se, sem disso se dar conta, a educar para a barbárie. E no entanto, escreve-se por aí, com tanta insistência, em tantos “sítios” dedicados à educação e ensino, que «a família deve educar para que a escola possa ensinar!». Talvez que esta insistência não seja mais que um desabafo de quem não vê reconhecido o seu trabalho e reivindica o apoio que não tem! Talvez! Mas mesmo assim não conseguimos evitar a provocação, numa pergunta: E se a família não educa, a escola desiste e não ensina?
 
A escola educa e ao educar instrui. A escola instrui e ao instruir educa. Mas para que possa educar ao instruir, precisa conhecer o sentido educativo da instrução que oferece. E aqui sobressai a importância de uma abordagem educativa por competências[2]
.

Podemos, por exemplo, ensinar história, passando apenas às crianças e jovens uma colecção de factos. Ao ensinar desta forma, conseguimos, talvez, pessoas instruídas! Mas só educamos se, no decurso do processo, as ajudarmos a ser melhores pessoas. Educamos, então, não em função de um futuro que não controlamos, depois de passado o tempo de vida na escola [porque não há como preparar alguém para vida que terá num futuro a 20 anos de distância], mas para o dia-a-dia vivido na sala de aula, na forma como convocamos a história [e outros saberes], na procura da compreensão do caminho que temos caminhado e dos caminhos que temos para caminhar. A ideia de uma “educação para a vida” não pode deixar de estar presente, obviamente. Mas se não conseguirmos, pela nossa acção, que as crianças e jovens que nos são confiados sejam boas pessoas hoje, não sei se o conseguirão ser no futuro! Daqui decorre «a proposta de que os conteúdos de ensino deveriam ser definidos em relação a práticas sociais cruciais para a vida dos cidadãos, mais do que num retomar de conhecimentos pré-definidos»
[3].

Valores e atitudes não são conteúdos de um programa que se passem “de cátedra”, através de formas tradicionais de ensino: são competências sociais que decorrem dos modelos de organização educativa em que se inscrevem. Mas a “gramática da escola” [aquela da tradição, que separa a educação da instrução] não se cansa de nos empurrar para o trivial, o “palpável” [a colecção de factos referidos atrás] que, pela sua “clareza”, nos dispensa de pensar. Então, torna-se necessário um olhar moderno sobre as competências sociais, para que, ao procurar integrá-las no currículo escolar, estas possam ser aprendidas e mantidas por toda a vida e não, como tem acontecido até hoje, revividas apenas em discursos, num espaço de tempo curto, ao serviço exclusivo dos fetiches daqueles que não entendem muito, nem de competências, nem da sua avaliação.

Do conjunto de saberes que a escola oferece, Philippe Perrenoud fala dos saberes como recursos [recursos “internos”, nas suas palavras]: os saberes que, uma vez guardados, nos ajudam a viver; aqueles saberes «que o indivíduo tem dentro de si, que, de uma certa maneira, estão registados na memória, incluindo a “memória do corpo”»
[4]. Saberes que orientam os nossos gestos, na relação que temos com o mundo, diríamos de um modo automático ou quase, que não precisam de grandes reflexões ou de serem reflectidos de todo, porque já foram reflectidos por nós, ou por interposta pessoa, no decurso do processo que os incorporou em nós. No entanto, sabemos, com Le Boterf, que «a competência não é um estado, e sim um processo»[5], e que a desactualização do saber que a sustenta faz parte, inevitavelmente, da sua natureza. Diz-se, então, a propósito, que as competências não são nem objectivos nem transversaisobjectivos foram os conhecimentos adquiridos, desejavelmente transversais, que as sustentam.
 
Daqui a importância de revisitar, ou (re)descobrir, os “saberes” que levam à abordagem de um problema desta maneira, daquela ou de outra qualquer, ou fazem agir por impulso[6].

_________________

[1] Ferrer Y Guàrdia. Escuela Moderna: páginas para la história, Barcelona, Publicaciones de la Escuela Moderna, 1912: p. 22.
[2] Há formas e formas de “desenhar” um currículo por competências, mas não há forma de o desenhar se o conhecimento estiver ausente. Não compreendemos, portanto, esta insistência na oposição conhecimento/competência, que não consegue desligar-se do conceito que nos chega da empresa, e que não é de todo o conceito a trabalhar na escola. Porque «o operador competente é aquele que é capaz de mobilizar e de colocar em prática, de modo eficaz, as diferentes funções de um sistema no qual intervêm recursos tão diversos quanto as operações de raciocínio, os conhecimentos, as activações da memória, as avaliações, as capacidades relacionais ou os esquemas comportamentais. Essa alquimia continua sendo uma terra amplamente incógnita» (Le Boterf, De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994:17).
[3] Olivier Rey in Notas críticas ao livro de Philippe Perrenoud “A escola deve preparar para a vida” [LER MAIS>>>].
[4] Philippe Perrenoud. “Desenvolver competências ou ensinar Saberes? A escola que prepara para a vida”. Porto Alegre, Penso Editora Lda, 2013: p. 46.
[5] Le Boterf, G. De la compétence: essai sur un attracteur étrange. Paris, Les Éditions d’organisation, 1994: p. 17. 
[6] Por exemplo, revisitar e desconstruir saberes que induzem certos tipos de comporta­mento, alguns saídos de uma certa cultura tradicional popular: “Olho por olho, dente por dente”, “Só quem é duro se dá ao respeito”, …

sábado, 22 de outubro de 2022

A liberdade de organizar escolas diferentes

Ter uma escola para todos [não falamos da obrigatoriedade escolar legislada em 1835], sendo um objectivo do nosso país, é-o apenas há algumas dezenas de anos, não sendo, ainda, uma ideia que percorra a totalidade dos países do mundo. Sabemo-lo todos.

Contudo, uma escola para todos não é uma mera escolha entre tantas outras que podemos ir fazendo: a própria natureza desta instituição, a coerência dos seus princípios, empurra-a inevitavelmente para um espaço que não exclua ninguém. Se assim não fosse, já não seria uma escola, mas sim um qualquer outro espaço onde se poderia falar de um conjunto de coisas, aprender sobre elas, etc.

A escola tornou-se, hoje, na República, mais do que nunca, numa “coisa pública” e, assim, imbuída da preocupação de não se desenvencilhar de ninguém, por isso mesmo, pertença de todos.

Desta forma, o facto de pertencer a todos, faz com que a escola não seja propriedade de ninguém. Ninguém deverá impor-lhe as suas regras, leis, conceitos, o que pode ou não discutir, as suas convicções ou mesmo os hábitos da sua comunidade.

Embora reconheça a legitimidade das comunidades e a sua importância, estas não constituem a sociedade. Por isso mesmo, dentro de uma escola ninguém se deverá sentir excluído, devido à sua identidade. É isto, ou seja, esta lei comum, que constitui realmente a sociedade. Sendo, então, um bem público, a escola é um lugar, por excelência, acolhedor e promotor da diversidade.

Penso, no entanto, que estamos a assistir nos últimos tempos a uma fortíssima movimentação para tornar a escola pública num espaço tendencialmente comunitário,* o que, a acontecer, levaria, a breve prazo e no limite, a que cada grupo tivesse a sua própria escola. Mas a escola pública não é isso: não é a cada um a sua escola.

Poderia até que, esta forma de organizar um outro espaço educativo (?), promovesse e desse maior coerência a algumas aprendizagens, mas iludiria aquilo que é fundamental, que é, e entendamo-nos, permitir que os meninos e meninas oriundos de diferentes comunidades, religiões, ideologias, raças, orientação sexual, possam aprender a viver juntas num mesmo espaço, não se lançando umas contra as outras e, melhor do que isso, sem que cada um tente impor ao outro a sua forma de viver e de olhar o mundo.

Por fim, e para ajudar o leitor a reflectir, deixo um pequeno excerto de “O Principezinho”:

– Andas à procura de galinhas? – diz a raposa.
– Não... Ando à procura de amigos. O que é que "cativar" quer dizer?
– Quer dizer que se está ligado a alguém, que se criaram laços com alguém.
– Laços?
– Sim, laços – disse a raposa – Eu não tenho necessidade de ti. E tu não tens necessidade de mim. Mas, se tu me cativas, nós teremos necessidade um do outro. Serás para mim único no mundo e eu serei para ti, única no mundo...
__________________

* Philippe Meirieu diz, a este propósito, que «uma sala de aula não é uma comunidade, uma classe não pode ser uma comunidade, tem obrigação de o não ser. Não é uma comunidade porque numa classe as pessoas não se escolheram. Não pode ser uma comunidade porque as pessoas reúnem-se numa classe de modo arbitrário, por um tempo determinado, sem terem sido consultadas sobre os seus pontos de vista, sobre o tipo de relacionamento que têm e onde estão inseridas, e sem terem escolhido o tipo de actividades que lhes irão ser impostas, contrariamente ao clube desportivo ou à sociedade musical.
O que reúne as pessoas numa sociedade, não podem, portanto, ser laços emocionais, o que não quer dizer que estes laços não existam, pois existirão sempre. Mas o que constitui o cimento de uma sociedade, por comparação com a comunidade, é que as pessoas estão lá sem que precisem necessariamente de gostarem umas das outras, sem gostar necessariamente das mesmas coisas e, mesmo assim, trabalharem juntas, respeitarem-se mutuamente, de construir coisas e saírem mais ricas do que quando entraram» [LER TEXTO COMPLETO >>>]

quarta-feira, 12 de outubro de 2022

Burocracia versus Autonomia dos Agrupamentos de Escolas e a balcanização do 1º Ciclo

Daniel Lousada

Quando vem à conversa o excesso de burocracia nas escolas, vem por arrasto, muitas vezes, a falta de autonomia dos seus Agrupamentos! Mas não vejo como seja possível esta ligação. Estes, tirando até ver o poder de contratar professores, por sua conta [e risco *], em tudo mais têm tido toda a autonomia do mundo!

Pelo que me é dado perceber, na comunicação do Ministério da Educação com as Direcções dos Agrupamentos, deve passar-se algo assim: As regras são estas..., mas como não há regra sem excepção, escolham as excepções que entenderem, para reforço da vossa autonomia! Burocrática, já se vê.

Veja-se, a título de exemplo, o 1º Ciclo obrigado a adoptar um horário por disciplinas, com o respectivo "livro de sumários" dos outros graus de ensino! Com uma medida aparentemente inofensiva, a pretexto da "coerência do sistema", da sua "uniformidade administrativa", leva-se os professores deste nível de ensino, a pegar num currículo que aposta na interdisciplinaridade e a parti-lo às fatias. Assiste-se, então, a algo, no mínimo caricato: o Ministério da Educação com medidas de flexibilização do currículo, com as quais pretende, supostamente, facilitar a organização de projectos interdisciplinares nos 2º e 3º ciclos; e os Agrupamentos de Escolas, com toda a sua “autonomia”, a levarem o 1º Ciclo [onde, por força do seu regime de monodocência, a interdisciplinaridade é vista como natural], a caminhar no sentido contrário, num processo incompreensível de “balcanização do currículo” [veja-se caixa "Não dei a aula em chinês"]. Desenganem-se, portanto, aqueles que pensam que a burocracia que mais "magoa", vem do Ministério da Educação!
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Philippe Meirieu e  Abedennour  Bidar «defendem que a liberdade pedagógica e a coerência dos sistema é essencial, mas a coerência do sistema não pode continuar a sobrepor-se à liberdade pedagógica», apelando no sentido de que «os professores sejam considerados como actores e autores responsáveis e não como meros executantes de processos estandardizados».
** 
Como diz António Nóvoa, «o controlo regimental da vida das pessoas e das instituições, sempre em nome da flexibilidade e da simplificação, é a obscenidade maior das sociedades contemporâneas***. A burocracia quando não é colocada ao serviço das pessoas [dos alunos e seus professores, neste caso] é apenas instrumento de manifestação de poder. E é de pequenos gestos burocráticos, que os pequenos poderes, com uma falta de cultura pedagógica que até dói, se afirmam!

O que mais massacra é o tempo gasto à volta do documento inútil, criado pelos agrupamentos, que não têm outro objectivo que não seja o de controlo administrativo. Como Refere Ph. Perrenoud, «perguntar-se a cada dia "para que serve?" é bem mais cansativo do que trabalhar duas horas a mais, dominando o que se faz, e sabendo que isso é útil e ao mesmo tempo reconhecido».****

Precisamos urgentemente de parar, e de inventar o dia de greve à burocracia para, longe dela, descobrirmos o que dela nos faz falta. Precisamos de professores(as) corajosos(as), capazes de confrontar os pequenos poderes, que não sabem fazer mais do que sabotar o seu trabalho; precisamos de virar os holofotes para a sua incompetência, no espaço público, se necessário. 

__________________

* "Risco" surge aqui entre parêntesis porque, a manter-se a "tradição", não haverá risco algum: apenas poder discricionário sem controlo. 

** Citados por Luís Goucha, "Crescer em humanidade. Quando o pedagogo se encontra com o filósofo: notas de uma entrevista" [LER MAIS>>>]

*** António Nóvoa. "Padagogia: a terceira margem do rio", p. 39 [LER MAIS>>>]

**** Philippe Perrenoud, Escola de A a Z, Artmed, Porto Alegre, pp. 41-43

segunda-feira, 10 de outubro de 2022

A experiência de Summerhill: Esperar que surja o desejo de aprender. Um beco sem saída

Philippe Meirieu
Phillipe Meirieu
n "Pédagogie des lieux communs aux concepts clés. Paris, ESF Éditeur
Versão portuguesa de Daniel Lousada
[também disponível em PDF >>>]

Embora a Escola de Summerhill tenha sido criada em 1921, o trabalho ali desenvolvido só foi conhecido fora das fronteiras de Inglaterra na década de 1960. O meio peda­gógico da “Escola Activa”, os pedagogos que se interessa­vam pelo movimento libertário e pela difusão das teorias psicanalíticas, em matéria educativa, conheciam a existên­cia da escola sediada em Sulfolk, mas a maioria desconhe­cia as suas práticas e apenas se referiam a ela de uma forma muito genérica. 

Em 1966, apareceu uma pequena obra do fundador de Summerhill, Alexander Neill, que ilustra o que estava em jogo naquele empreendimento: o objectivo consistia em permitir que as crianças aprendessem e se desenvolves­sem livremente, através da prática colectiva de autoges­tão. Com efeito, Neill considerava que as obrigações esco­lares e sociais tradicionais eram contraproducentes: ao impor às crianças aquisições mecânicas e superficiais, afas­tadas das suas preocupações, fomentava-se a hipocri­sia e a mentira; favorecia-se o caminho individualista e o sucesso a qualquer preço, em prejuízo das aprendizagens profundas, assentes na investigação e na cooperação. 

Tudo isto fazia eco das teorias bem conhecidas, então, da “Escola Activa”, na linha seguida pela Escola de Roches. Era apenas um pouco mais radical, pois Neill não vacilava em arrasar os tabus educativos em matéria de sexuali­dade, tabus que, em seu entender, apenas dissimulam frustrações e agressividade inúteis. 

Neill alcança o seu momento de glória em 1970, quando não se havia ainda esfumado a explosão libertária de 1968: a publicação de “Libres enfants de Summerhill” [cri­anças li­vres de Summerhill] tem o efeito de uma bomba. Numa série de capítulos ilustrados, com muito humor, Neill des­creve a sua escola. É mais do que evidente que o autor não se sente confortável com o estilo dos tratados de pedago­gia e, de facto, nem se dá ao trabalho de fazer uma expo­sição sistemática dos seus princípios e práticas. Mas o qua­dro é sugestivo quanto baste, para que muitos vejam nele uma proposta alternativa original. Madeleine Chapsal, es­critora e jornalista, co-fundadora do L’Express, escreve en­tão nesse semanário, que não é, no entanto, nada afecto às especulações libertárias: «Porque é tão rara uma experi­ên­cia tão positiva, tão necessária numa época em que todo o sistema de ensino, de um ponto ao outro da cadeia, do jardim-de-infância à universidade, mostra o seu fra­casso

Como vemos a retórica indestrutível do “Fracasso do sis­tema” já estava presente. E vemos sobretudo, que Sum­merhill – sem dúvida devido à natureza simpática e ao mesmo tempo desarticulada da proposta – apresenta-se como uma alternativa institucional a ter em conta, uma alterna­tiva em que o educador resolve o problema do desejo de aprender da maneira mais simples do mundo: esperando com tranquilidade, sem intervir, que o desejo se manifeste de forma espontânea… 

Na realidade, Neill assenta as suas propostas numa profis­são de fé, ingenuamente rousseauniana: 
«A minha mulher e eu decidimos abrir uma escola, na qual daríamos aos alunos a liberdade de expressão. Para fazê-lo, devíamos renunciar a toda a disciplina, a toda a direc­ção, a todas as sugestões, a toda a moral precon­cebida, a toda a educação religiosa fosse ela qual fosse. Alguns dis­seram que eramos muito corajosos, mas, na verdade, não precisámos de coragem. Do que preci­sá­mos, já tínha­mos: a crença no facto de que a cri­ança não é má, mas boa».[1] 

Neste sentido, Neil estava convencido de que «o excesso de agressividade de que falamos, nas crianças oprimidas, não é senão um forte protesto contra o ódio que lhes é di­rigido», e crê que insistir, como fazem os psicólogos e edu­cadores, na necessidade de exercer as inevitáveis pressões, para controlar esta agressividade, é um erro: «Não é possí­vel treinar um cão de caça quando este está preso a cade­ado. Como tão pouco, em psicologia humana, se pode enunciar teorias dogmáticas sobre uma humanidade prisi­oneira do seu ódio desde há várias gerações».[2] 

Apoiado nas suas convicções, Neill deixa que as crianças que recebe na sua escola sigam as aprendizagens que lhes são propostas, em total liberdade. Alguns – que de acordo com Neill estão deformados pelo “ensino tradicional” – ne­gam-se a assistir às aulas. Ninguém os recrimina nem obriga a apresentar-se. Ninguém tenta, tão pouco, con­vencê-los da necessidade ou interesse de aprender o que quer que seja. Um caso extremo, é uma criança que não participa de nenhuma actividade, durante vários anos, e abandona Summerhill, aos 17 anos, sem saber ler! Mas a maioria deles, uma vez que vivem livres num ambiente sem obrigações, voltam-se naturalmente para a leitura, a ma­temática, a carpintaria e a geografia. E então entre­gam-se a elas por inteiro, sem nenhum limite:
«Tom, de 8 anos, estava sempre a bater-me à porta para perguntar-me: “Diz-me, que posso fazer hoje?”. Não que­ria dizer-lhe nada. Seis meses mais tarde, se alguém pro­curava o Tom, podia encontrá-lo no seu quarto rodeado de papéis. Passava horas a desenhar mapas geográficos. Um dia, um professor de uma faculdade de Viena visitou Sum­merhill. Conheceu o Tom e fez-lhe um monte de per­gun­tas: “Interroguei o seu pequeno Tom sobre geografia e ele falou-me de lugares que me eram desconhecidos por completo”».

A partir do momento em que uma criança manifesta o de­sejo de aprender, seja o que for, Neill não só deixa que mergulhe no que elegeu – com a consequência possível de não dormir o suficiente – como também lhe faculta toda a ajuda técnica possível, em especial através de lições indi­viduais intensivas. Tanto assim que encontramos, nos seus textos, junto a violentos ataques à “Escola tradicional”, uma crítica virulenta aos métodos pedagógicos que procu­ram dourar a pílula, para que as crianças a consigam dige­rir melhor.
 

Além disso, denúncia o uso do jogo e de todos os artifícios que têm como objectivo tornar os saberes atractivos, de forma artificial, para os quais, segundo a sua opinião, há que esperar que a criança os acolha espontaneamente. E para os quais – de forma milagrosa – quase todas as crian­ças de Summerhill, se voltam espontaneamente! 

Fica por explicar, mesmo que minimamente, esse milagre, es­pecialmente se não nos resignarmos a deixar que a ale­a­toriedade de situações individuais oriente a aprendiza­gem. Bruno Bettelheim, que estudou exaustivamente o “caso Summerhill” e a quem não se pode acusar de hosti­lidade relativamente a Neill, levanta a ponta do véu: afirma que «Summerhill é uma boa escola», mas reco­nhece, no entanto, que isso não se deve à qualidade da sua pedagogia. Se a maior parte das crianças acaba por querer aprender, é, simplesmente – diz Bettelheim –, por­que «Neill é um tipo formidável e porque faríamos qual­quer coisa para obter a sua estima e afecto».[3] Com efeito, se o compreendemos bem, Neill não praticava a absten­ção educativa mais do que para recuperar em sedução o que havia abandonado em exigência! Mantinha, assim, a dependência que procurava abolir, permitindo ao mesmo tempo a intervenção do carácter fundamentalmente in­justo e inevitavelmente selectivo dos fenómenos de iden­tificação. 

Portanto, é impossível limitarmo-nos a esperar que o de­sejo espontâneo de aprender apareça, pois corremos o risco de virar as costas à pedagogia e ao seu projecto fun­dador: transmitir a todas as crianças os saberes necessá­rios ao seu desenvolvimento social e cidadão. E no en­tanto, mesmo quando Summerhill parece algo que ficou num passado distante, esta tentação reaparece, de vez em quando. Ela é até, implicitamente, um dos lugares mais co­muns da vulgata pedagógica: a criança é, por natureza, um ser curioso, desperto a tudo, desejoso de aprender desde que nasce, que pede apenas que se lhe dê acesso aos sa­beres mais elaborados e, por isso mesmo, não recusa ne­nhum esforço…, pelo menos enquanto os pais não tenham matado esse desejo, por falta de jeito, ou enquanto a insti­tuição escolar, com as suas pressões, não acabe por con­trariar esta disposição espontânea![4] Em "Nascido para aprender", título de uma obra de Hélène Trocmé-Fabre, que se baseia nas "ciências cognitivas", a criança estaria, de certa forma, destinada a desenvolver os conhecimentos necessários à sua educação, de acordo com uma dinâmica que só teríamos de acompanhar, de forma benevolente. 

Mas, não estaremos a confundir aqui o “desejo de Apren­der” com o “desejo de saber”? Ninguém duvida de que as crianças desejam saber: querem saber quais são as suas origens e como obter satisfação dos adultos que a ro­deiam. Querem saber como obter boas notas e passar no exame. Querem saber como participar num debate com amigos ou como utilizar um dispositivo electrónico. Mas prefeririam não ter de aprender tudo isso. Em primeiro lu­gar, porque a aprendizagem sempre se nos apresenta como uma perda de tempo, sobretudo quando alguém pode efectuar a tarefa por nós. Depois, porque todo o pro­gresso técnico consiste, precisamente, em permitir-nos fa­zer, em cada dia, menos esforço, para obter o resultado pre­tendido, sem ter de compreender como, nem saber o que se passa “debaixo do capô”. 

É isto, precisamente, que está em jogo na pedagogia es­colar, o ponto em que se produz a ruptura com o “desejo natural da criança”: na sala de aula, trata-se de passar do “desejo de saber” – desejo de eficácia no curto prazo, gui­ado pela preocupação de obter satisfação com o menor esforço possível – ao “desejo de aprender”, que exige dar-se tempo para explorar o desconhecido, que choca com a estranheza inevitável dos saberes novos, que aceita o es­forço sem a perspectiva de remuneração imediata…, a fim de aceder ao prazer – nunca de todo garantido quando nos lançamos nesta empresa – que procura a inteligibili­dade dos seres e das coisas. Trata-se, pois, de adiar a “ló­gica produtiva[5] para se confrontar com o gozo de pensar. E isto não tem nada de natural; pelo contrário, fazem falta conteúdos exigentes, situações estruturadas,… e a mediação de um professor que, pode dizer-se, faz falta à escola.



[1] A afirmação da “bondade natural” do homem” de Rousseau só é válida no “estado natural”, e esse “estado natural” não é uma etapa histórica determinada, mas uma hipótese filosófica que representa, de algum modo “o homem, abstracção feita de influências sociais nefastas que perturbam o seu desenvolvimento”. Assim concebida, a “bondade natural do homem” é uma espécie de “marca original” [independente do todo o “princípio” histórico] e inseparável, para Rousseau, do princípio de “perfectibilidade”, que podem alcançar os seres humanos mediante a educação. Rousseau não considera, com efeito, que “a criança seja boa”, mas que tem em si essa potencialidade e que graças à educação emancipadora, é possível, portanto, fazê-la aceder ao estado de sujeito, e permitir-lhe construir uma sociedade democrática no âmbito do contracto social.

[2] Na realidade, Neill recusa as análises de Freud sobre a agressividade e prefere, pelo contrário, as de Wilhelm Reich sobre o carácter decididamente positivo da “pulsão de vida”.

[3] Mais ainda: «As mudanças que Neill produz nos seus alunos, ao estarem assentes na identificação, só têm êxito com aqueles que podem identificar-se com ele. E muitos podem fazê-lo simplesmente, porque ele é o homem mais extraordinário que conhecem. Mas se um homem de menos estatura tentar aplicar a sua ingénua filosofia…  será o caos, porque o conceito que Neill tem de humanidade é incorrecto, mesmo quando esse conceito o inspira até ao ponto de fazê-lo alcançar coisas extraordinárias» [Bettelheim e outros, 1972: 90-91].

[4] Veja-se Menès (2012). A autora explica que, enquanto sujeito, a criança é movida por desejos, entre eles, o desejo de aprender. Os adultos podem alimentar esse desejo mediante um diálogo que inspire confiança ou facilitando a sua relação com o ambiente. Também podem “anestesiá-lo” não respondendo nunca a esse desejo ou bem, pelo contrário, esgotá-lo “sobrestimando-o” permanentemente.

[5] Demonstrei, em 2010, até que ponto a "lógica produtiva", dominante no campo económico e social, onde é legítima, sempre ameaçou a sala de aula e colocou muitos alunos em risco de serem marginalizados da aprendizagem [o que favorece apenas aqueles que são mais dedicados e que já conhecem a satisfação da aprendizagem]. Esta é a principal razão pela qual a escola não pode imitar "a oficina".